“Qeros”, romãs e costumes

O leitor Hermínio Santos partilha as suas impressões sobre o Irão.

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À entrada de um hotel em Esfahan, no Irão, está afixado um welcome gift que, em forma de cartaz, descreve os “pecados” da sociedade ocidental, em especial dos EUA, em relação ao terrorismo e ao mundo islâmico. Nem sequer falta a clássica referência a Israel. A surpresa não está na mensagem, habitual na retórica oficial iraniana, mas sim na forma discreta como o cartaz está afixado, um sinal de que a propaganda não é a prioridade e que o Irão recebe de braços abertos os turistas ocidentais.

Com excepção do indescritível Museum-Garden of Anti-Arrogance — um museu totalmente anti-americano instalado na antiga embaixada dos EUA, em Teerão, e curiosamente mais procurado por turistas ocidentais do que por iranianos (pelo menos no dia em que passei por lá…) — a propaganda anti-Ocidente não se faz sentir.

Esta é uma das surpresas de quem visita o Irão como turista. Existem muitas outras: cidades modernas e organizadas, transportes públicos eficientes entre cidades (nem falta um lanchinho distribuído durante a viagem), excelentes e bem sinalizadas auto-estradas, simpatia e proximidade nas ruas, segurança, história a rodos, óptimos locais para beber expressos, sumos de romã fantásticos, os melhores pistácios do mundo e tâmaras inesquecíveis. Os portugueses ainda têm direito a um plus: Carlos Queirós (pronuncia-se “Qeros”), o seleccionador do Irão. É uma espécie de herói nacional e por isso a proximidade iraniana é ainda maior quando se fica a saber que somos portugueses.

Mas, para um cidadão ocidental que tem orgulho na história do Ocidente, especialmente na sociedade construída no pós-II Guerra Mundial, desde a separação entre o Estado e a Igreja até à força do rule of law e do sistema de “contra-pesos”, passando pela liberdade de costumes e de expressão — hoje tudo seriamente ameaçado pela explosiva combinação entre populismos e nacionalismos de esquerda e de direita, a ditadura do politicamente correcto e das redes sociais, e o fim da era dos consensos — é impossível não reparar no reverso da medalha.

Ou seja, na separação entre sexos nos autocarros públicos nas cidades (os homens à frente, as mulheres atrás), na rígida forma de vestir das mulheres e também dos homens (esqueça o clássico traje de turista despreocupado — t-shirt e shorts — a primeira peça de roupa pode usar mas a segunda não), no peso da religião, na figura omnipresente da Khomeini e Khamenei nas ruas e edifícios públicos através de fotos e gigantescos cartazes (não é exclusivo do Irão, noutros países também existe este culto da personalidade), na escassez de locais para ouvir música ou assistir a um concerto (embora o bairro arménio de Esfahan, onde até existe uma catedral, seja uma animação).

Mas nada disto deve impedir uma visita ao Irão. Nação milenar que soube preservar o seu património histórico apesar dos excessos da revolução islâmica de 1979, é, dos quatro países muçulmanos que já visitei em trabalho ou turismo, o mais organizado e eficiente, onde nem sequer falta um serviço tipo Uber. Às vezes, em Shiraz ou Esfahan, por exemplo, o que parece faltar para serem cidades “ocidentalizadas” é “apenas” a liberdade de costumes. Apesar da rigidez que ainda é visível em relação a esses costumes e que atinge principalmente as mulheres, estas movem-se.

Os exemplos estão bem à vista. Em alguns cafés de Teerão frequentados por gente jovem existem sinais de obrigatoriedade do uso de véu — uma situação impensável para quem pensava, como eu, que a obrigatoriedade estava implícita — e nas ruas é visível que as gerações mais novas de mulheres recorrem a soluções “criativas” para usarem esse mesmo véu. As mulheres falam melhor inglês do que os homens — nas bilheteiras para os autocarros expresso ou nos museus, por exemplo, são os próprios homens que pedem a intervenção das mulheres. Apesar das aparentes contrariedades que enfrentam diariamente — usar aquelas vestes pretas em dias de grande calor não deve ser fácil (as turistas ocidentais escapam às roupas escuras, mas não à túnica e ao lenço) — há uma coisa que não perdem: o sorriso. Pode ser que, um dia, a revolução seja delas…

Hermínio Santos

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