O pai do saxofone e a filha do Meuse

Considerada uma das mais belas cidades da Valónia, Dinant, aninhada entre os maciços rochosos das Ardenas e reflectindo-se nas águas do rio, tem em Adolphe Sax um dos seus mais proeminentes nativos. Isto sem ignorar todo o encanto que lhe conferem a cidadela e, aos seus pés, a igreja de Notre-Dame.

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Anibal Trejo

Johan Ladang ainda se recorda do velho autocarro de marca Mercedes, pintado de azul e com um interior que em tempos fora de um branco imaculado, um autocarro conduzido por uma “senhora simpática” que todos os dias, pela manhã, recolhia os alunos à porta de suas casas a caminho da escola e os devolvia, pela tarde, ao conforto dos seus lares.

Johan Ladang nascera em Sint-Truiden, no distrito de Hasselt, mas, ainda menino, mudara-se para Hoepertingen, também na província belga de Limburg. Essa era a aldeia cujas ruas, não raras vezes desertas, eram percorridas pelo autocarro que Johan Ladang guarda na memória com um carinho especial.

Aquele dia, no cada vez mais distante ano de 1979, era especial, não era dia de aulas mas de passeio — o velho autocarro iria levá-lo, a ele e a pouco mais de duas dezenas de estudantes, acompanhados da professora de História, responsável pela organização da excursão cultural, a Dinant.

Johan Ladang tinha apenas 12 anos e nunca ouvira falar da cidade, a não ser uma menção, perdida no espaço e no tempo, à guerra, talvez à I Guerra Mundial, talvez à II. Ele não tinha a certeza e tão-pouco se preocupava com essa ignorância tão característica de um tempo pueril. Ao seu lado, estava sentado um dos seus melhores amigos, Dirk, mais tarde vítima de um acidente de viação, quando tinha apenas 18 anos. A pressa de viver, com o carro rolando a uma velocidade excessiva sobre o asfalto, fora como um apelo da morte que espreitava mais adiante. Johan Ladang também apreciava a velocidade sobre duas rodas, a emoção, tinha o sangue a fervilhar nas veias.

- Uns anos mais tarde, quando já era um adulto, costumava vir a Dinant duas vezes por ano, para participar em provas de motocrosse. 

Ao fundo, com as suas águas rasgadas por embarcações, estende-se o Meuse.

- Para nós, flamengos, é o Maas.

A paisagem é soberba, oferece-se, sem demora, à contemplação, convidando a seguir parte do fluxo silencioso do rio que corre com alguma pressa para o mar do Norte. Construída na segunda década do século XIX pelos holandeses, no mesmo lugar onde foi desmantelado um forte erguido com assinatura de Vauban — que, por sua vez, substituíra um castelo-fortaleza levantado pelo príncipe-bispo de Liége, Théoduin, no século XI —, a cidadela é o único lugar que os olhos de Johan Ladang conheceram durante todo esse tempo em que foi um visitante apressado e desatento – ainda que Dinant convide a uma errância tranquila.

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Jean-Paul Remy

- Não me lembro, nessa época, de alguma vez ter descido à cidade. Mas, com o tempo, senti uma espécie de frustração por nunca ter descoberto verdadeiramente Dinant, por me remeter a olhá-la desde as alturas, como um ser que nunca teve presença de espírito para se inteirar das suas riquezas culturais, talvez com a arrogância própria da idade, de uma fase da vida em que achámos que tudo sabemos, que ninguém nos pode ensinar o que quer que seja.

Mas a professora de história, cujo nome Johan Ladang não se recorda, ainda que tenha bem presente a forma afável como todos tratava sem alguma vez deixar de impor disciplina, queria mostrar-lhe, a ele, a Dirk, a todos os outros que se deixavam conduzir no velho autocarro, o que representava a cidadela, a sua história, a sua posição estratégica, todo o dramatismo que encerrava, a sua importância durante a guerra que aqui foi ganhando raízes profundas.

Palco de massacres

Em 1914, Dinant, contando com apenas sete mil habitantes (avisados pelo presidente da câmara à época para não tomarem parte no conflito, nem para se manifestarem a favor dos Aliados), era um local estratégico para a travessia do Meuse. As tropas alemãs já haviam ocupado o Luxemburgo e, a 4 de Agosto desse ano, invadiram a Bélgica (assumira uma posição neutral na guerra e o governo e o rei Albert I, ao abrigo do Direito e dos tratados internacionais, deram uma resposta negativa ao ultimato dos germânicos requerendo livre passagem para os seus soldados de acordo com as directrizes do plano Schlieffen) com ordens claras para avançar até Dinant (e outras cidades belgas, com um total de 800 mil homens), de onde mais facilmente poderiam controlar todos os movimentos no rio e estender o seu domínio até Givet, já próximo da fronteira francesa.

Os franceses, adivinhando as intenções dos alemães, já se haviam instalado na cidadela, esperando um ataque a qualquer momento. Os combates sucederam-se (conta-se que foi na Valónia que tombou morto o primeiro homem durante a I Guerra Mundial), os gauleses foram obrigados a uma retirada, descendo os 408 degraus que uns dias mais tarde iriam voltar a subir, reconquistando aquele local estratégico que não conhecia um momento de tréguas, em contraste com a paz e a serenidade que agora me transmite, exacerbada pela tranquilidade que parece subir das águas do Meuse.

Entre avanços e recuos, a artilharia alemã acabou por expulsar as tropas francesas a 24 de Agosto, não sem antes massacrar, na véspera, 674 civis belgas e queimar 1200 casas — naquela que foi considerada a maior carnificina da Violação da Bélgica (a Valónia é, com efeito, a primeira a conhecer a brutalização do século XX, com mais de cinco mil mortos, destruições sistemáticas, violações e pilhagens) e que serviu, mais tarde, como argumento para o envolvimento dos Estados Unidos nos conflitos.    

Toque de grandiosidade

Pela primeira vez depois de tantos anos — e agora que já se aproxima perigosamente dos 50 —, Johan Ladang desce até às margens do Meuse. Desde a cidadela, há duas alternativas — tanto se pode utilizar o teleférico, com uma panorâmica que prende o olhar e desprende o dinheiro da carteira, como contar, gratuitamente, as escadas que conduzem à parte baixa de Dinant: as 408, um penoso caminhar quando se percorrem no sentido ascendente, que nem franceses nem alemães tiveram tempo para contar há mais de cem anos. Mal a contagem termina, na Place Reine Astrid, viro à direita, ainda sem escutar o murmúrio do Meuse, para fixar o meu olhar, como alguém que contempla um museu, na fachada monumental da igreja colegiada (estatuto adquirido no ano 934) Notre-Dame, com o seu toque de grandiosidade, o que lhe permite rivalizar, em imponência e quase em altura, pelo menos desde aquela perspectiva terrena, com as muralhas da cidadela,  actualmente um museu, que encima o rochedo.

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Sousa Ribeiro

A Notre-Dame de Dinant, com o seu estilo gótico (os seus traços românicos prevaleceram entre o século X e o século XIII, altura em que foi parcialmente destruída devido ao colapso de uma parte do penhasco), abriga um dos vitrais mais soberbos da Europa, da autoria de Gustave Ladon e uma autêntica jóia que relata, graficamente, a Bíblia através das suas personagens femininas; sem ignorar toda uma atmosfera que, talvez pela sua sobriedade e grandeza que não se observa desde a rua (transmite a ideia errada de ocupar um espaço exíguo por força da presença do proeminente rochedo escarpado) convida ao recolhimento, à reflexão, a uma visita demorada para não correr o risco de deixar de admirar algumas das obras do pintor Antoine Wiertz (nasceu em Dinant mas viveu a maior da sua vida em Bruxelas).

E, serenamente, terá tempo para plantar os olhos na pia baptismal que data de 1472 e no púlpito de 1731, feito de dinanterie — a arte do dinantier, uma palavra que surgiu no século XIV e define aquele que trabalha com utensílios de cobre e de latão, na sua origem fabricados na cidade de Dinant.

Já no exterior, o melhor mesmo (desde que não tenha prestado atenção desde o promontório onde está situada a cidadela que em tempos vigiava o tráfego sobre o Meuse, o que se torna quase impossível) é cruzar o rio e sentar-se ao lado da estátua de Charles de Gaulle (erguida em 2014 para prestar homenagem àquele que era, em 1914, um tenente e se contou entre os muitos feridos, atingido por uma bala no perónio) para admirar o monumental campanário coroado por uma espécie de bolbo (há quem o ache parecido com uma cebola, outros tendem a encontrar semelhanças com uma pêra), inicialmente pensado para encimar o edifício da edilidade local.

Quando a ideia estava prestes a ser materializada, os técnicos asseguraram que a construção não aguentaria o peso e, heresia ou genialidade, a verdade é que o bolbo pagão (a cebola ou a pêra) encontrou o seu espaço no topo da igreja de Nossa Senhora de Dinant, que conheceu momentos de grande turbulência ao longo dos anos — queimada, saqueada, demolida e inundada mas, ainda assim, resistindo, orgulhosa da sua pedra calcária à qual os valões gostam de chamar a “mármore negra de Dinant”.  

Charles de Gaulle está de costas para o templo e para a cidadela e mesmo para a ponte que também recebe o nome do general que também foi presidente da França. Ao longo dela, enquanto se escuta o marulho do Meuse, estão colocadas, de um lado e do outro, 28 estátuas que constituem outra das grandes atracções de Dinant, seguramente a mais encantadora de todas as cidades da Valónia. De repente, uma carrinha estaciona a meio da ponte e dela saem dois homens carregando um saxofone multicolorido que colocam em poucos minutos sobre um pedestal depois de retirarem um outro que ali se erguia, uma operação que repetem aqui e acolá, perante o olhar surpreendido de uma dúzia de turistas que fotografam alguns dos instrumentos que são, desde 2010, uma das imagens de marca da cidade. Há quem tenha dificuldade em perceber o significado das estátuas, em compreender por que são 28 — mas mal satisfazem a sua curiosidade entregam-se ao interessante jogo de descobrir qual o saxofone que corresponde a cada um dos países da União Europeia.

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Anibal Trejo

De uma forma inteligente, transmitindo cor à cidade, Dinant presta tributo aos estados-membros, o que combina com uma parte importante da sua história.

Sax appeal

Nascido em 1814 — faleceu em 1894 —, em Dinant, Antoine-Joseph Sax, popularmente conhecido como Adolphe Sax, inventou o saxofone, o instrumento musical que revolucionou o jazz e outros géneros musicais ao longo do século XX. Influenciado pelo pai, que fabricou instrumentos em madeira e em metal, assim como pianos e harpas, Adolphe Sax estudou no Conservatoire Royal de Musique, em Bruxelas, e em 1841, quando tinha 27 anos, submeteu nove instrumentos musicais inventados por ele na Brussels Industrial Exhibition, cuja organização o considerou demasiado jovem para conquistar o prémio máximo.

Um ano mais tarde, em 1842, Adolphe Sax partiu para Paris, onde apresentou uma das suas invenções, o saxofone — um instrumento singular feito de metal, pensando por ele enquanto tentava apurar o som do seu clarinete baixo. Enquanto os franceses acolheram o novo instrumento pouco mais do que excitados, o exército encomendou saxofones para as suas bandas. Ao mesmo tempo, Adolphe Sax, em conjunto com o pai, desenvolveu alguns outros instrumentos. Uns anos mais tarde, em 1846, ele garantiu a patente do saxofone e, já em 1957, o conservatório de Paris iniciou aulas de saxofone tendo Adolphe Sax como professor.

Um dos filhos mais queridos de Dinant, Adolphe Sax, a despeito de todas as suas invenções, nunca retirou grandes dividendos da sua excelência. À glória que se anunciava no horizonte, opunha-se, em contraste, a inveja daqueles que se recusavam a admitir a sua autenticidade, os defensores de uma tradição arreigada que se opunham, com veemência, a franquear as portas às descobertas do criador nas salas de concertos.

“Nenhum instrumento que conheço produz essa estranha sonoridade que fica bem no limite do silêncio”, admitiu, um dia, Hector Berlioz, compositor romântico francês. Mas, apesar de uma aprovação que caminhava a passos largos para a unanimidade, Adolphe Sax continuava a escutar a voz dos seus detractores, sendo acusado, sem qualquer base de sustentação, de ter roubado a ideia do saxofone, o que o obrigou a gastar as suas parcas poupanças em tribunais para se defender da comunidade de músicos tradicionalistas, alguns dos quais terão subornado outros instrumentistas para vedarem o acesso do saxofone às orquestras.

Enquanto travava esta luta e lhe via fugir o pouco dinheiro das mãos, a patente expirou, em 1870, sulcando um trilho para a fabricação de saxofones em série por empresas, como a francesa Selmer Company (fundada no início do século XX por Henri Selmer), que se haveriam de tornar numa referência a nível internacional na produção do instrumento de sopro. 

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O sol desponta com mais força por entre as nuvens quando me encaminho, a meio da tarde, pela Rua Adolphe Sax, ao encontro do número 37, onde uma turista, sorridente, se deixa envolver pelo braço esquerdo da estátua do inventor, sentado num banco de madeira e de ferro, de pernas cruzadas e segurando o saxofone, e de costas para a fachada do espaço que lhe presta homenagem. La maison de monsieur SAX, mais do que um museu, é um espaço lúdico e interactivo inteiramente dedicado à vida e à obra do génio, uma oportunidade única para melhor se identificar com o fabuloso destino do saxofone.

Num local que desperta os sentidos, o visitante, como um insecto com as antenas levantadas, vê e ouve ao longo de um percurso de anamorfoses, composto de sete totens de perfis contemporâneos que evocam cada instrumento da família (sopranino, soprano, alto, tenor, barítono, baixo e contrabaixo), até ser de novo conduzido ao banco onde Adolphe Sax está agora entregue à sua solidão.

Viagem à Patafónia

Não muito longe, na Rue en Rhée, a música continua a impregnar a atmosfera, na Maison de la Pataphonie, um espaço que celebra a arte, a história e a sinfonia, como uma espécie de país imaginário onde tudo é música. Max Vandervorst, o verdadeiro artífice deste território musical materializado pela sociedade Amalgamme, mais do que relacionar o neologismo Patafónia com Patagónia, prefere entrar pelo mundo da “Patafísica”, como uma ciência que vive à margem das leis. O conceito, aparentemente confuso, mesmo um pouco marginal, torna-se claro quando se percorre o interior de uma das casas mais antigas de Dinant, que coloca à disposição do visitante um conjunto de instrumentos musicais criados de materiais recicláveis encontrados no lixo.

Neste país de fantasia auditiva, descobre-se a ciência das soluções imaginárias, como um apelo ao ritmo composto por cada um em tubos de gás, réguas escolares, pneus gigantes, garrafas de plástico, raquetes de ténis, latas de cerveja, vasos de todos os tamanhos ou ladrilhos partidos. É uma viagem extraordinária por reinos acústicos que soam como algo de divino e despertam em cada um uma alma musical, bem como uma inspiração da qual muitos nem sequer suspeitavam antes de entrar na Maison de la Pataphonie.  

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Jean-Paul Remy

Joahn Ladang ainda andará, a esta hora, pelas ruas de Dinant, provavelmente saboreando os famosos biscoitos feitos de mel e farinha, moldados de forma artesanal desde 1774 para adquirirem a forma de verdadeiros quadros esculpidos — ou mesmo uma tarte salgada de queijo, outra das especialidades de Dinant. A qualquer passo, certamente se recordará dessa primeira viagem à cidadela onde tantas lutas se travaram, da mesma forma que nomes como Lester Young, Charlie Parker, Ornette Colleman, Maceo Parker, Stan Getz, Sonny Rollins, Cannonball Adderley ou John Coltrane, entre tantos outros, se terão lembrado, vezes sem conta, de Adolphe Sax, nascido precisamente cem anos antes dos conflitos, durante as suas actuações. Da mesma forma, ainda, que Dinant, a filha do Meuse, o Maas para Johan Ladang, nunca esquecerá o pai do saxofone.

Subo as 408 escadas e olho o rio, essa auto-estrada rasgada pelos barcos, entre eles um que não podia ter recebido outro baptismo.

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Chama-se Sax. 

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