Carlos conta-lhe a história do café enquanto espera

A preparação do café é acompanhada por histórias e mitos desfeitos. Tudo através das palavras de Carlos Vieira, que se reformou para continuar a trabalhar.

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Nelson Garrido

De cada vez que entra um novo cliente no Booínga, Carlos Vieira assume um duplo papel: o de especialista em café e o de professor. Pergunta o que queremos, de que forma e aconselha-nos, explicando o processo ao longo da preparação do café. O primeiro passo é tornar clara a diferença entre o café que pedimos em qualquer canto da cidade e o café de especialidade que podemos encontrar neste pequeno espaço em Matosinhos – algumas pistas: o cheiro, a cor e o grão.

Mas não se enganem. Carlos Vieira não é especialista na arte de escolher, torrar e preparar café há muitos anos. Abriu o Booínga há três anos, para não se aborrecer durante a reforma. É que, antes de pegar na cafeína, o homem por detrás do avental era engenheiro civil. “Todos me disseram: ‘Ainda agora foste para a reforma e já te meteste noutra coisa’”, conta. E assim foi, reformou-se e pegou numa paixão que vem das suas raízes africanas. “O meu pai já tinha uma fazenda em Angola”, explica. A história desenrola-se em simultâneo com a história portuguesa e angolana. Estala a guerra colonial, explodiram a fazenda e quem estava lá. Carlos ainda era “miúdo” e saiu de Angola com a família ainda antes dos 18 anos, primeiro para o Brasil, depois para Portugal, onde concluiu os estudos.

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Nelson Garrido

Hoje, aos 59 anos, deixou a engenharia e tornou-se um especialista em café. Os quadros pendurados com as formações que já soma no currículo dão “credibilidade” ao seu trabalho – “as pessoas gostam de ver”, atira. Quadros pendurados junto às escadas que levam ao escritório (numa espécie de primeiro andar) onde guarda as amostras de café verde, para torrar e experimentar. Tudo com método, porque ali só entra o café escolhido pelo paladar do dono. É um Chemex, um V-60 ou um expresso. Ou pode ser um saco de café colombiano, que Carlos Vieira não só prepara café como vende sacos aos clientes que já têm equipamentos próprios. O espaço tem todas estas vertentes: cafetaria, escritório, loja e sala de aula.

Nada é feito ao acaso neste espaço. A moagem é perfeita, a filtragem é temporizada e pesada (“Porque há uma relação entre a quantidade de água e o café”) e até o “golden ratio” conforme está escrito na parede ao fundo da sala faz sentido. Lê-se: “17.42 – 1”. Este é o número de partículas de água para o grão de café. “Está aí para as pessoas me perguntarem”, diz. E por aqui se vê o gosto de Carlos Vieira em dar, além do café, um conjunto de curiosidades aos clientes.

Já aqui dissemos que nada é feito ao acaso, mas não é totalmente verdade. O nome foi aleatório. Depois de tantos nomes propostos e rejeitados, foi “em desespero”, diz Carlos, que pegou no mapa, olhou para o continente africano e esticou o dedo. “República Centro Africana, Buinga”. Trocou o “u” por dois “o” e o nome ficou definido pelo acaso.

Carlos Vieira gosta de contar estas histórias sobre como se faz o café ou de onde vem. Percebe que muita gente ainda acredita nos mitos que se criaram em torno de uma bebida quase sagrada em Portugal. O antigo engenheiro civil desfaz os mitos todos. Não é por ser mais escuro que o café é mais forte, explica enquanto prepara um café filtrado com uma cor bem clara, mas com mais cafeína do que se encontra nos expressos da esquina. “O que dá a energia de manhã não é o café. São os oito gramas de açúcar que as pessoas metem lá dentro.” Não há açúcar – nem no bolo que costuma ter ao sábado para acompanhar os cafés -, nem café que passe o filtro da máquina sem antes ser torrado e validado por Carlos Vieira. Aqui tudo passa por ele – apesar da ajuda da irmã e da esposa, as “opinion makers”, como apelida.

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O apreço pelos jovens está também bem patente no discurso: “Os jovens são os que passam mais por cá, porque já viajaram, já provaram outros cafés”. A culpa está nos hábitos e o próprio dono do Booínga sabe disso: “Uma tia minha sempre se habituou a beber café com chicória [uma mistura que dava um trago amargo à bebida], e primeiro que percebesse que aquilo era mau, demorou anos e anos”, conta. Carlos Vieira quer mostrar que os cafés de especialidade têm outro aroma e outro sabor, que ainda não se encontram ao virar da esquina e que também podem contar histórias.

Texto editado por Sandra Silva Costa

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