O teatro de Sergio Boris existe nas entrelinhas

Viejo, Solo y Puto traz a obra do argentino pela primeira vez a Portugal. Em Lisboa e no Porto, lugar para um teatro em que vale sobretudo a intuição e o não-dito.

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Dois irmãos. O mais velho trabalha com o pai na farmácia da família desde sempre; o mais novo acaba de se formar como farmacêutico. Na farmácia, têm a companhia de um delegado de propaganda médica (que por ali passa regularmente para fazer negócio) e dois travestis, que mantêm relações amorosas mais ou menos explícitas, mais ou menos intuídas, com os dois amigos (o irmão mais velho e o delegado) que estão ali todas as noites e os fornecem de cocktails de medicamentos e hormonas femininas. São estas as cinco personagens de Viejo, Solo y Puto, do dramaturgo e encenador argentino Sergio Boris que, no âmbito da Capital Ibero-Americana de Cultura, se estreia em Portugal de 28 a 30 de Novembro, no Teatro Maria Matos, Lisboa, e segue depois para o Teatro do Campo Alegre, Porto, a 2 de Dezembro.

Quando Boris começou a trabalhar na peça há sete anos, sabia pouco mais do que isto sobre o espectáculo que começava a germinar. Partiu, como faz quase sempre, daquilo a que chama “hipóteses de vínculo”, um descritivo a traço grosso das personagens, sem qualquer espessura, para que os actores possam ser empurrados no sentido de uma qualquer narrativa possível – mais ou menos fluida, mais ou menos linear. E isto porque acredita que “o acto teatral não está centrado somente no que dizem as personagens”, afirma ao Ípsilon. “As personagens são atravessadas pelo tempo cénico e, assim, a palavra tem o valor do tempo cénico, não é literatura.”

Sergio Boris não se senta sozinho a escrever para depois entregar um texto finalizado que os actores possam representar no respeito total por cada palavra. Em vez disso, cria um dispositivo mínimo, ao longo de meses espera que a peça vá acontecendo e tira notas que depois transforma num guião a ser seguido – mas sempre sujeito a ser modificado. Está longe de ser um processo original, mas é aquele que segue e que alimenta um teatro que, por isso, não se desenrola ao ritmo de um cuidadoso arco narrativo nem avança com absoluta segurança rumo a um desfecho que possa explicar tudo o que ficou para trás.

“Não se avança graças àquilo que é dito”, traduz. “Avança-se muito mais por aquilo que está em jogo e por aquilo que vai acontecendo entre os corpos. É um olhar distinto daquilo que seria e é para mim o texto explicativo, em que as personagens explicam o que sentem, explicam o que vão fazer e o que querem fazer, como são, como chegaram até ali e acabam sufocadas por mecanismos de explicação.” No teatro de Sergio Boris, portanto, vigora muito o não-dito, o espaço todo em volta das personagens, que nunca saem por completo de uma zona de mistério e indefinição, como se, quase num manifesto teatral, resistissem a ser achatadas e definidas com precisão e detalhe. Cada uma delas é esquiva à sua maneira e existe apenas naquele actor, no momento presente. Não há um passado nem um futuro que emanem de cada um dos cinco, como se aquela fatia de vida a que assistimos fosse de facto tudo o que há para contar e saber sobre este grupo.

Os avanços são também ditados por um pulsar musical. Uma música que não se escuta, bem entendido, mas um movimento “que permite pensar numa melodia, no ritmo de cada cena”. “Não se pode falar de coisas diferentes da mesma forma ou no mesmo tom. Se não há contraste, então não há cores nem ritmo. E precisamos desses contrastes, dessas intensidades e da materialidade sonora das palavras.”

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Uma questão de método

O método de Boris leva também a que o texto acabe por estar ligado a uma profunda marca de oralidade, mas sem a artificialidade de partir para o papel para tentar ganhar essa forma na boca dos actores. De facto, foi da boca que lhes saiu e lhes sai cada frase tal e qual como a ouvimos. A essa espontaneidade de discurso e de construção das situações que nunca abandonam aquela recta temporal de pouco mais de uma hora, em que os cinco na farmácia preparam e ameaçam – por entre fatias de pizzas, cervejas quentes e cumbia – a saída para a discoteca tropical El Mágico, infiltra-se também uma oralidade roubada aos delegados de propaganda médica e travestis que os actores visitaram para pesquisa, “como tentativa de escapar à paródia” e, de caminho, ganhar alguma fidelidade.

Acresce que o método de Boris é um truque que lhe permite também fugir à página em branco. Ela nunca chega a existir, verdadeiramente. Porque tudo começa a ser moldado a partir do palco, a partir da invenção de uma situação e de personagens que não têm directrizes nem mais a que se agarrar senão ir desbastando a história em ensaios, a experimentar caminhos sem saber onde vão desembocar. O teatro do argentino tem essa qualidade do inesperado. Da falta de noção prévia do que pode estar a acontecer e para onde se encaminha.

Estreada no Festival de Rafaela em 2012, Viejo, Solo y Puto fez uma prolongada temporada em Buenos Aires e tem sido apresentada em vários dos principais palcos europeus. Apesar dessa vida que já se estende longamente para trás, Sergio Boris confessa que se preserva o “espírito de a descobrir em permanência”, tornando claro que também para ele a peça nunca se revelou na totalidade. Houve quem lhe chamasse “objecto tão decadente quanto sublime” e não falta quem veja aqui uma qualquer nova possibilidade para o teatro contemporâneo.

Talvez isso seja mais evidente neste território da farmácia que parece negar o escape a qualquer uma das personagens. Mas em que nunca há uma real tentativa de fuga. Os cinco juntam-se numa noite supostamente festiva para celebrar a obtenção do diploma de farmacêutico do irmão mais novo, embora o tom negro da peça sugira festejos pouco exuberantes. O que se entende pelas regras de uma relação de poder e de hierarquia que se inverte entre os irmãos, mas também porque há um lado algo abismal na forma como se procede a troca comercial com os travestis, em que o desejo fervente surge sempre contaminado por uma sugestão de dominação.

Na presença dos travestis, no entanto, há também uma expressão de liberdade. A medicação hormonal e as drogas são um convite repetido ao não-controlo, tal como à reclamação das decisões sobre um corpo. Mas há todo um mundo de insinuações nas entrelinhas. E é aí que o teatro de Sergio Boris floresce: em tudo quanto possa ser extraído dessas entrelinhas.

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