O monstro que somos

Apesar dos avanços não fomos, contudo, capazes de travar o monstro que agrega em si as forças do machismo, do sexismo, da misoginia e do conservadorismo

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Lorna Scubelek/Unsplash

Os índices de violência doméstica e de género dizem muito de um país e da sua história. Os registos da criminalidade neste domínio, e que são apenas a ponta de um icebergue cujas reais proporções se desconhecem, revelam muito do estado de saúde (ou de doença) da democracia das sociedades onde têm lugar.

Portugal deixou de ser uma ditadura há cerca de 40 anos. De lá para cá fizemos, enquanto nação, um percurso formal de combate à violência contra as mulheres digno de reconhecimento, colocando ao dispor das vítimas leis, mecanismos, recursos e estruturas que garantem, em teoria, a sua protecção e segurança. Apesar dos avanços não fomos, contudo, capazes de travar o monstro que agrega em si as forças do machismo, do sexismo, da misoginia e do conservadorismo e que, das ruas aos tribunais, vai impondo, sem temores, o seu ódio de estimação às mulheres e ao que elas representam.

A título ilustrativo, analisem-se as evidências da violência doméstica. De acordo com os dados do Relatório Anual de Segurança Interna de 2016, o crime de violência doméstica afecta, em cerca de 80% dos casos, mulheres e crianças do sexo feminino, que mantêm ou mantiveram no passado com os/as agressores/as — homens em cerca de 85% dos casos —relações de parentesco ou de intimidade. A violência doméstica é, em Portugal, o segundo crime contra as pessoas com maior incidência (28,1%), logo a seguir ao crime de ofensa à integridade física voluntária simples (28,6%). No ano passado registaram-se no país 22.773 crimes de violência doméstica contra cônjuges ou análogos, mais 1,4% do que em 2015. A violência psicológica foi a mais reportada, em 82% dos casos, seguindo-se a física, em 68% dos casos, a social, em 16% dos casos, a económica, em 9% dos casos e a sexual, em 3% dos casos. Em 54,6% das situações o crime foi praticado pelo cônjuge ou companheiro/a e em 17,1% dos casos pelo/a ex-cônjuge ou ex-companheiro/a. Segundo o Observatório de Mulheres Assassinadas (OMA) da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), em 2016 foram cometidos 22 femicídios, tendo havido 33 tentativas de femicídio. 64% das mulheres assassinadas mantinham, na altura do crime, ou tinham mantido no passado, relações de intimidade com os femicidas. Até Novembro de 2017, o OMA contabilizou 18 femicídios e 23 tentativas de femicídio. As relações de intimidade, presentes e passadas, representam 72% do total dos femicídios registados.

Por detrás das estatísticas, escondem-se histórias dramáticas de pessoas reais. Histórias muitas vezes conhecidas e ignoradas que, se devidamente intervencionadas, poderiam ter tido outro desfecho. Com efeito, ainda que o crime de violência doméstica seja um crime público desde 2000, o que significa que qualquer pessoa o pode denunciar, independentemente da vontade da pessoa titular dos interesses ofendidos, são ainda poucos/as aqueles/as que o fazem, remetendo o assunto para a esfera do privado. Enquanto continuarmos a achar que o que acontece às vítimas não nos diz respeito, que as mulheres são propriedade dos homens e que, por isso, eles estão legitimados a castigá-las, teremos que persistir na defesa do óbvio, isto é, a ter que pugnar pelos direitos das mulheres.

O Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, que se comemora a 25 de Novembro, é um bom pretexto para trazer à discussão pública os efeitos que o monstro que agrega em si as forças do machismo, do sexismo, da misoginia e do conservadorismo tem na vida concreta das vítimas. É que esse monstro somos, na realidade, todos e todas nós.

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