“Marcelo queimou os barcos como Cortez”

Com o primeiro-ministro em denial, o Presidente adoptou uma “visão de longo prazo” para marcar o regime, defende João Cravinho.

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O Presidente passou a fiscalizar o Governo em novos moldes após os incêndios de Verão daniel rocha

A paralisia do Governo torna-se mais explícita devido à nova atitude do Presidente da República. Esse é o entendimento do dirigente nacional do PS João Cravinho, que considera que “Costa dá a ideia de que só reage a Marcelo, que está entrincheirado e reactivo”.

Ao ser crescentemente interventivo, a partir do incêndio de Pedrogão Grande e do assalto em Tancos, mas sobretudo após os incêndios de Outubro, o Presidente “fragilizou Costa para o futuro e condicionou-o”, defende Cravinho, que define a comunicação ao país a 17 de Outubro como o momento em que “Marcelo queimou os barcos como Cortez quando desembarcou no México”. E passou a assumir: “Eu aqui estou para fiscalizar”.

Para a politóloga Marina Costa Lobo, a atitude do Presidente é legítima: “As iniciativas do Presidente são compreensíveis, incompreensíveis são os silêncios do Governo. Primeiro pela inactividade, o Governo ficou paralisado, no momento em que o relatório de Pedrógão ficou disponível, o Governo calou-se.”

A hesitação do executivo surgiu logo após Pedrógão Grande, defende Cravinho, para quem este incêndio trouxe três problemas”. Primeiro, “o que falhou foi uma concepção de combate aos incêndios que era o modelo escolhido por Costa como ministro da Administração Interna há dez anos - ele tem a reforma da Protecção Civil e o SIRESP no currículo”, afirma, explicando que “Costa tinha de defender o seu modelo, ficou defensivo e, como é teimoso, fechou-se na fortaleza.”

O segundo problema “é que António Costa é, em parte, responsável por terem sido nomeadas, meses antes, pessoas próximas do aparelho partidário ou escolhidas por cima, que levaram os seus para a Protecção Civil”, sublinha Cravinho, advertindo que “Constança [Urbano de Sousa] era a ministra, mas não tinha ligação ao aparelho do partido nem estatuto político para isso”.

Assim, “falhou a concepção estratégica e a operacionalidade por falta de profissionalismo”, ao que acresce um terceiro problema: “Falhou também Constança, que nunca foi mulher do terreno.” Só que “mantê-la era fundamental” para Costa. “Se a tratasse como culpada, seria acusado de estar a encontrar um bode expiatório para se proteger quando o culpado era ele. Por isso optou por manter o submarino fechado” e “teve então uma reacção negativa, de denial”, explica Cravinho, concluindo: “Provavelmente aconselhado por técnicos de comunicação, Costa convenceu-se de que tinha de minimizar o caso e mostrar que estava tudo sob controlo e que podia ir de férias. Isso, do ponto de vista da relação emocional com o país, foi um tiro no pé brutalíssimo que ele nunca percebeu.”

Quando “as pessoas se apercebiam que Costa não entendeu o que se estava a passar e não tinha capacidade de comando”, prossegue Cravinho, “Marcelo saltava para cima” dos acontecimentos “como a oportunidade da vida dele” dizendo "que é preciso apurar responsabilidades, o que transmite duas ideias: Costa está a esconder responsabilidades e as suas em particular.”

Por outro lado, advoga Cravinho, “Costa estava inactivo e não ia tomar medidas de fundo antes do relatório". Achava que "comandava o tempo e enganou-se por completo”. Isto porque os incêndios de 15 de Outubro foram “mais devastadores do que Pedrogão Grande do ponto de vista político”. Os acontecimentos são conhecidos: “Costa vai à televisão, informa Marcelo do que vai fazer e que Constança fica para apresentar os planos da pólvora, promove-a como chefe do sector até a remodelação de Janeiro... estava implícito que ela ficaria até ao fim do Orçamento”. Mesmo a remodelação, defende Cravinho, saiu desastrosa pois “dá ideia de que não há partido e que há apenas um grupo de amigos de Costa, o que é péssimo, pois o país está contra o amiguismo”.

Vichyssoise dos incêndios

O que se passou a seguir foi que “Marcelo furou-lhe o jogo, foi a vichyssoise dos incêndios”, ironiza Cravinho, defendendo que o Presidente “teve uma atitude assertiva e desleal, respondeu com determinação e força, com ideia de esmagamento”. E sublinha: “Marcelo sabe que Costa perdeu aqui a maioria absoluta, o país viveu e viu na televisão cenas que ficarão no inconsciente por muitos anos. Se a economia correr bem o PS fica nos 40%”. Mas não chega para a maioria absoluta.

O dirigente do PS considera que isto aconteceu porque “Marcelo escolheu a visão de longo prazo que vai além da legislatura”. Ou seja, “o PSD vai ter um novo líder” mas “Marcelo pensa que nem Rio nem Santana chegam para ganhar a Costa ou impor um acordo de coligação ao PS”, pelo que “haverá uma segunda gerigonça mais frágil”. Assim, “a meio da próxima legislatura, nas autárquicas de 2021, o PS só pode recuar e, entretanto, o PSD já resolveu a situação da liderança, porque, depois de 2109, ou confirma o líder ou substitui-o”.

Nesse cenário, prevê Cravinho, se “o líder do PSD for Santana, Marcelo alia-se” a ele ou a outro com o mesmo tipo de perfil. Considerando que “Marcelo quer governar sem alteração da Constituição (e ela permite-o, desde que haja autorização do primeiro-ministro, o Presidente pode presidir ao Conselho de Ministros com regularidade e em áreas chave)", Cravinho defende que “Marcelo tem tempo para apoiar um futuro primeiro-ministro do PSD que aceite um Presidente muito forte, tem até 2025”.

Se o Presidente “se recandidatar, tem entre 2023 e 2025 para concretizar isto, pois, mesmo que Costa faça mais uma legislatura, as legislativas serão em 2023”, explica Cravinho, concluindo: “A alternativa é que se as coisas não correrem como quer, Marcelo não se recandidata, só lhe interessa fazer segundo mandato se marcar a História”.


 

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