Um país do futuro

O Brasil precisa de um compromisso histórico entre aqueles que continuam a representar uma esperança de dignidade da esfera pública.

Em fuga de uma Europa moralmente arruinada, Stefan Zweig encontrou no Brasil o derradeiro lugar do seu exílio desesperado. Fascinado pelo país, dedicou-lhe um livro que se tornaria imediatamente célebre e polémico. Alguns críticos denunciaram o carácter excessivamente elegíaco da obra. O que é certo é que ela permaneceu como uma referência e o seu próprio título se impôs como um sinal: Brasil, um país do futuro. Não sendo esse o sentido que o autor lhe pretendeu atribuir, acabou por se afirmar a ideia de um país em perpétua construção e permanentemente adiado. Como se a promessa do futuro significasse sobretudo um desmesurado falhanço histórico.

O Brasil está a atravessar um dos momentos mais difíceis da sua história. Há duas semanas atrás tive a oportunidade de o visitar e de constatar presencialmente o estado de profunda degradação institucional e política que só tem paralelo com o grau de conflitualidade que percorre a sociedade brasileira. Apesar dos grandes avanços ocorridos sob as presidências de Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e Dilma Rouseff, há fracturas, atavismos profundos e hábitos comportamentais perversos que subsistem num país que está muito longe de corresponder ao estereótipo idealizado de um espaço de encontro multicultural pacífico. Basta olhar um pouco para além do Brasil de bilhete-postal para perceber o peso do racismo étnico, cultural e social, a magnitude da corrupção, do nepotismo e do clientelismo, a fragilidade extrema do mundo institucional.

Como seria de prever, Michel Temer não conseguiu sobreviver à vontade de ser Presidente da República a qualquer preço. É certo que preside — e que dirige um governo de qualidade muito duvidosa —, mas não dispõe do mais leve respeito popular e transporta consigo a permanente suspeita da ilegitimidade moral da sua própria condição presidencial. Temer é hoje um político aprisionado pelos escandalosos acordos que tem sido forçado a fazer no Senado e na Câmara dos Deputados com o intuito de garantir a sua própria sobrevivência, e não dispõe, por isso mesmo, dos meios imprescindíveis para a mera dignificação do cargo que exerce. Nessa perspectiva, o Brasil é hoje um país à deriva, dirigido por zombies a quem não escasseiam provas dadas em matéria de nepotismo e corrupção. É triste mas é verdade.

Raramente um país com a dimensão e os recursos do Brasil viveu uma situação tão dilacerante no domínio da sua representação política democrática. A classe política brasileira, por motivos diversos que vão desde a natureza do sistema político e eleitoral, até à desmesurada influência pública de alguns meios de comunicação social e de algumas igrejas evangélicas onde predominam o simplismo conceptual e a demagogia sectária, não está manifestamente à altura das enormes responsabilidades que lhe estão cometidas. Há naturalmente excepções, algumas delas deveras significativas e que nos impedem felizmente de cair num cepticismo absoluto.

Na semana passada tive o ensejo de conhecer em Estrasburgo a ex-Presidente Dilma Rousseff, afastada do lugar para que o povo a elegera por um procedimento parlamentar se não ilegal, pelo menos flagrantemente imoral. Confesso que não tinha até essa ocasião a melhor das opiniões a seu respeito no plano estritamente político. Amigos brasileiros haviam-me vendido a ideia de uma mulher excessivamente dogmática, propensa a comportamentos sectários e pouco dada à promoção do diálogo, quer com apoiantes, quer com adversários. Depois de a ter ouvido numa sessão pública e de ter conversado longamente com ela num jantar promovido por alguns deputados europeus socialistas, entre os quais se incluía também o meu colega e amigo Carlos Zorrinho, fiquei com uma visão completamente distinta acerca do seu carácter e da sua personalidade política. Dilma é superiormente inteligente, revela uma seriedade extrema na acepção mais exigente do conceito, inscreve-se doutrinariamente na linha do socialismo democrático e deixa transparecer uma sensibilidade social própria de uma figura política decente. Terá cometido erros, mas é claramente alguém que se situa muito acima da média da vida política do seu país, quer intelectual, quer moralmente.

O Brasil precisa de uma espécie de compromisso histórico entre aqueles que, um pouco mais à direita ou mais à esquerda, continuam a representar uma esperança de dignidade ao mais alto nível da esfera pública. Só assim poderá enfrentar com sucesso as ameaças extremistas e demagógicas que se adivinham no horizonte e resolver adequadamente os principais problemas que impedem a sua integração plena no mundo globalizado e que condenam à miséria grande parte da sua população. Há hoje naquele país um risco imenso: o de se acentuar ainda mais a clivagem entre a maioria da população, condenada a uma pobreza endémica e alienante, e uma elite provida dos recursos de capital financeiro, económico, cultural, simbólico e científico capaz de lhe garantir a integração nos grandes fluxos globais. O problema não é de agora, mas adquiriu no presente uma particular intensidade dadas as características específicas da nossa época.

Por muito que se tente criticar e até escarnecer da acção política levada a cabo pelos dois Presidentes eleitos pelo PT, não é legítimo ignorar o legado extraordinário que deixaram em matéria de promoção dos Direitos Humanos e de dignificação dos homens e das mulheres concretos do seu país. No Rio de Janeiro, há 15 dias atrás, uma professora de uma Universidade do Rio Grande do Sul dizia-nos com indisfarçável comoção: “Foi devido à acção do Presidente Lula que, pela primeira vez ao fim de muitas décadas a ensinar, tive alunos negros a assistir às minhas aulas.” Dilma Rousseff lembrava-nos na semana passada a sensação de plenitude política que a acometeu quando ela própria, na condição de Presidente da República, entregou o diploma de licenciatura a uma jovem médica negra brasileira. Essa jovem ter-lhe-á dito na ocasião: “O ter chegado até aqui significa que finalmente a Senzala está a entrar na Casa-Grande.”

Sabemos infelizmente que ainda há um longo caminho a percorrer para que a Senzala entre, de facto, na Casa-Grande. Há, porém, no meio das tão negras vicissitudes que afligem o presente brasileiro, quem esteja disposto a percorrer esse caminho. Ter conhecido e conversado com alguém como Dilma Rousseff aumentou a minha confiança no futuro desse imenso e tão próximo país que é o Brasil.

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