Estado mínimo ou Estado omnipresente?

Algo vai mal quando actores políticos responsáveis tentam executar o Estado mínimo e depois clamam por um Estado omnipresente.

Nos últimos meses a discussão política centrou-se à volta das questões do papel do Estado, de um modo geral de forma superficial, sem ser traçada a genealogia das ideias e as posições contraditórias dos actores políticos. A área da Saúde é sempre aquela que é mais sensível. Na amálgama dos comentários e discussões partidárias explícitas e implícitas confunde-se, com propósito ou sem ele, a palavra Estado com administração pública, aparelho do Estado com administração central e esta com governo. A confusão de conceitos serve ao arremesso político. É natural que o cidadão comum sinta o Estado como inimigo ao pagar impostos ou descontos sociais, mas clame pelo Estado protector quando se trata da sua segurança. O que já não é natural, mas malicioso, é quando actores políticos responsáveis teorizem e tentem executar o Estado mínimo e depois clamem por um Estado omnipresente.

O que se tem chamado “neoliberalismo”, com raízes remotas nos anos 80 do século passado, não foi criado do nada. Fundado numa escola económica, no poder dos centros e redes financeiras, em governos, tem uma filosofia própria. O conceito do Estado mínimo veio sobretudo dos conservadores ingleses e dos republicanos dos EUA, mas teve em Portugal vozes e partidos políticos que o defenderam. Veio em contracorrente do que se tem chamado “Estado social” estabelecido no pós-guerra. E das ideias mais ou menos igualitárias que animaram os movimentos alternativos. O PSD defendeu o Estado mínimo, pela boca de Passos Coelho e outros. Também não se pode dizer que tenha grandes teóricos... Falou contra o Estado, sem dizer qual e onde, encontrando aceitação nessa parte da sensibilidade da população que sente o Estado como inimigo, quando vai à repartição das Finanças, ou a outros balcões públicos administrativos. Mas é a mesma população que quando vai ao centro de saúde ou põe os filhos na escola não sente que está a usar os serviços do Estado, de forma universal e gratuita (tendencialmente na Saúde), exactamente porque há impostos destinados à redistribuição. É um caso de dupla consciência muito bem explorado pela direita neoliberal. É verdade que os serviços administrativos, na face que oferecem ao utilizador, têm-se encarregado de mostrar a cara de mau ou de pau e a burocracia, a tal sensação de inimigo.

Na teoria do Estado mínimo, o Governo PSD-CDS fez o discurso do “empreendedor”, de não estar à espera do Estado, de não haver coitadinhos a pedir benesses. É o discurso do desenrascanço, da competição, do individualismo, de não se conformar à zona de conforto e partir para a aventura no trabalho. Por trás deste discurso esteve a realidade muito prática de cortar nos serviços da Saúde e da Educação, nas reformas e nos salários. Para manter a renda da dívida em termos impostos pelos mesmos meios financeiros que provocaram a crise. Mais uma vez abusando da credulidade das pessoas que acreditaram que tinham estado a viver acima das suas possibilidades ou que o pecado tinha vindo da “bancarrota” ainda hoje tão falada, pelas bancadas parlamentares da direita, mesmo após o escândalo das bancas de facto rotas, que escoavam o dinheiro que lhes tinham confiado.

Quando falavam de reforma do Estado, era de facto do Estado encurtado que falavam. Quando falavam das “reformas” em geral, tratava-se da liberalização do trabalho à peça. Esta orientação foi de facto degradando os serviços do Estado. A degradação é como a toxicidade crónica, não se nota no dia seguinte, vai-se notando. O orçamento para a Saúde no Orçamento Geral do Estado (OGE) desceu de 8849 milhões em 2010 para 7738 em 2014, ou seja, menos mil milhões. O custo da Saúde pago por cada cidadão do seu bolso passou de 26,9% em 2008 para 31,7% em 2012. A criação de unidades de saúde familiares (USF), projecto de Sakellarides e posto em execução pelo Governo socialista, dando importância aos cuidados primários e aliviando as idas aos hospitais, quase que estacionou. Populações empobrecidas tiveram mais anemias, mais pneumonias, mais ansiedade e depressão, mais tentativas de suicídio, como se demonstrou. Onde é que os serviços de Saúde e particularmente os hospitalares pouparam: nos custos do trabalho e na manutenção ou renovação do equipamento. As consequências não são imediatas. É a tal toxicidade crónica...

É difícil cortar nos medicamentos, embora a discussão dos preços com a indústria esteja prejudicada pelas dívidas. É impossível cortar no material clínico diário e os serviços externos acabam por ser pagos, embora com atraso. Onde foi então o grande corte? As contratações e progressões de pessoal foram bloqueadas, o que se arrasta até à complexa luta actual dos enfermeiros, assim como à luta dos médicos. A imposição da mudança das 35 para as 40 horas de trabalho semanais significou a perda de um sexto do salário, as horas consideradas extraordinárias foram reduzidas em cinco horas semanais.

Como exemplo, o Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN), o maior do país (Hospital de Santa Maria), baixou os custos dos recursos humanos de 202,98 milhões de euros em 2010 para 170,28 em 2014. O corte no pessoal e a alteração dos horários gerou o chamado “burnout” em enfermeiros e médicos que foi largamente divulgado. Com estas condições de trabalho, o absentismo aumentou. Geraram piores serviços, mais crispação, pior ambiente. E também aquilo que é menos falado — mais infecção hospitalar, 11% em 2015, superior à média europeia de 6% (dados da OCDE).

Outra área onde houve cortes de grandeza significativa foi nos equipamentos. No CHLN, os custos com equipamentos passaram de 13,17 milhões de euros em 2010 para 1,21 em 2014. E a informatização significa uma grande melhoria mas custa dinheiro, não só de implementação como de manutenção. Entretanto, os privados cresceram.

E assim chegámos à “geringonça”. O que aí está descrito são números, não são “impressões”. Havia e há que repor salários e reformas. Reparar o estado do Estado. E ser bom aluno em Bruxelas, havendo mesmo pessoas como Daniel Bessa que em 2017 defendem défice zero... Ou relatórios como o do Conselho de Finanças Públicas, que no caderno sublinha a vermelho os eventuais futuros erros.

Há, portanto, quem chore as míseras reposições de salários e reformas, dizendo que esse dinheiro devia ter vindo para o equipamento do Estado. Mas dizem que afinal o emprego aumentou, porque os salários nos privados são baixos! E há quem diga (Rui Rio) que ainda teria feito “pior” do que Maria Luís Albuquerque. Cortava mais onde? A resposta é sempre a “boa gestão”, como se os trabalhadores pobres pudessem gerir bem um salário miserável, tal como se os serviços subfinanciados pudessem puxar o lençol sem descobrir os pés.

Aliás, o orçamento destinado à Saúde no OGE de 2018, embora superior em cerca de 700 milhões ao de 2014, é ainda insuficiente. Início de descongelamento de carreiras, pagamento de horas extraordinárias, reposição de pessoal, reposição de equipamentos, pagamento de dívidas, segundo o ministro pelo menos 900 milhões que já estão “fora do prazo”, não pode ser feito com este orçamento, muito menos se houver cativações. Mais uma vez é difícil planear, é ir navegando à vista e ao longo do ano ir pedindo mais qualquer coisinha...

Todavia, os defensores do Estado mínimo vêm agora exigir “sol na eira e chuva no nabal”. Apoiam a luta dos enfermeiros e dos professores, que contêm motivos justos, sem o enquadramento geral das carreiras, da progressão e da forma de promoção. Reclamam a presença do tal Estado omnipresente, que deve mesmo estar atento ao local de realização de jantares de eventos sociais. Exigem a afinação dos equipamentos públicos, há muito à míngua dum orçamento suficiente. E fazem cara esquisita aos resultados financeiros. Chama-se a isto populismo. Felizmente que estes actores têm pequeno perfil para condutores de massas.

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