A ema não anda para trás

Sobra o caminho de, com agência própria ou sem ela, baixar a exigência perante as farmacêuticas. E, sem surpresa, é isso que o Reino Unido já está a fazer.

Ainda há poucos meses o governo britânico defendia que apesar de ter optado por fazer sair o seu país não só da UE, mas também do mercado único e da união aduaneira, não havia qualquer necessidade de retirar do Reino Unido a Agência Bancária Europeia e a Agência Europeia do Medicamento. Os restantes 27 governos da UE encolheram os ombros e decidiram sozinhos avançar para a reinstalação dessas duas agências dentro do território da União.

Alguma tinta correu ontem sobre a escolha de Paris e Amesterdão como novas cidades-sede destas agências. Mas vale ainda a pena entender o que significa para um país como o Reino Unido perder acesso a estas agências e a todas as outras que regulam o mercado europeu. É que o debate sobre o "Brexit" fascinou muita gente no ano passado, e chegou a ter adeptos que viram no "Brexit" um exemplo para Portugal, mas hoje impera um estranho silêncio sobre as consequências que o "Brexit" já tem. É sempre melhor discutir a caricatura do que a realidade.

Tomemos o caso da EMA — a Agência Europeia do Medicamento. Para um país como o Reino Unido, deixar de participar na EMA significa uma de duas coisas.

A primeira hipótese é a mais barata: simplesmente seguir as determinações da agência europeia que acabaram de abandonar e cujos critérios de avaliação de medicamentos são reconhecidamente exigentes. O único problema é que, para quem decidiu sair da UE para “recuperar o controle”, aceitar as decisões de uma agência na qual não se participa não cheira a grande resgate de soberania.

A segunda hipótese é mais cara: significa construir uma agência própria e procurar os técnicos especializados necessários (se isso for praticável, o que nem sempre é o caso: no caso da EURATOM e da energia nuclear, só compensa formar e pagar técnicos à escala continental). O problema é que a eficácia de uma agência reguladora depende da capacidade real para determinar as ações de uma indústria que, em muitos casos, é global. E o Reino Unido tem menos hipótese de influenciar uma indústria global com os seus 65 milhões de habitantes do que a Area Económica Europeia (liderada pela UE) com os seus 500 milhões.

Sobra por isso o caminho de, com agência própria ou sem ela, baixar a exigência perante as farmacêuticas. E, sem surpresa, é isso que o Reino Unido já está a fazer. Num voto ocorrido no parlamento britânico há poucos dias foi decidido que após o "Brexit" o Reino Unido não manteria uma diretiva destinada a diminuir o sofrimento dos animais na agricultura, na indústria e nos testes de cosmética ou farmacêutica. E isto é só um exemplo. Através dos poderes diretos dados aos ministros para o "Brexit", o parlamento nem precisará de votar para que direitos laborais, proteções ao consumidor e garantias ambientais possam desaparecer com uma mera assinatura. E os EUA já deixaram claro que só aceitam negociar um acordo comercial com o Reino Unido se a privatização das compras de medicamentos no Sistema Nacional de Saúde britânico estiver em cima da mesa. Resultado: menos soberania em todos os casos.

Para voltar ao início, ainda há poucos meses o governo britânico achava que para sair da UE ou do mercado único não era preciso Londres perder a agência bancária ou a do medicamento. Visto do presente, tal atitude não revelava mais do que a arrogância do reacionário: querer que tudo mude para todos, doa a quem doer, mas que nada mude para ele se isso lhe custar o mínimo sacrifício. Para o reacionário, o presente é mau, o futuro é péssimo: tudo deve mudar já para os outros para que tudo fique como antes era para ele. Em caso de impotência, opta-se por uma decisão simbólica na esperança de que ela crie a ilusão de regressar aos anos dourados, um pouco como o homem que acredita que se usar capachinho também consegue fazer diminuir a pança.

Só que, convém nunca esquecer, o tempo é como a ema — não a agência do medicamento, mas a ave sul-americana. Segundo se diz, as emas nunca andam para trás. Para ser rigoroso, as emas só o fazem em último caso. Quanto ao tempo, não o faz em caso nenhum.

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