Para lá da tragédia... uma oportunidade perdida?

A recuperação de toda a área ardida é um assunto sério que não pode ser tomado de forma avulsa.

Muito se falou sobre a desgraça que se abateu em Portugal nos últimos cinco meses. Será pouco o que se vai ou tenciona fazer para devolver um pouco de dignidade a quem não dependia de ninguém a não ser da sua casa, pedaço de terreno e trabalho braçal. Importa olhar para o futuro e pensar de forma desafiante o que se irá fazer em toda a área ardida. Conhece-se o relatório redigido por uma comissão técnica independente, outro proveniente da Unidade de Missão para a Valorização do Interior, as diferentes fases da reforma florestal e tem-se conhecimento da constituição de uma nova unidade de missão para a instalação do sistema de gestão integrada de fogos rurais. Em nenhum destes documentos se menciona o que plantar, que floresta se pretende para Portugal e, especialmente, que cuidados a tomar tendo presente as alterações climáticas. As notícias sobre novas medidas, cursos, acções para combater os incêndios, continuam a fazer manchetes de jornais. Mas as medidas preventivas e estruturantes tardam em surgir. Para lá da tragédia, há a necessidade de uma estratégia coerente que permita dar a conhecer aos proprietários o que plantar para ter retorno e impeça a restauração avulsa realizada por grupos autónomos, bem-intencionados.

Sem um fio condutor sobre o que se pretende florestar e com o aumento da aridez, novos fogos de dimensões idênticas poderão ocorrer em menos de dez anos. Um dos maiores desafios que Portugal enfrenta é saber como investir de forma sustentável nestes sistemas sócio-ecológicos degradados que sirvam não só o desenvolvimento social, atracção de gente jovem, mas também a conservação e sustentabilidade de uma biodiversidade resiliente ao aumento de temperatura e falta de água, capazes de fornecer retornos económicos. Independentemente das causas, o fogo é uma perturbação possível de se tornar mais frequente devido ao aumento da aridez. Este é um facto que há muito os cientistas clamam, baseados em modelos de previsão. Estas informações terão de ser lidas e tomadas medidas preventivas.

Um estudo recente desenvolvido na Península Ibérica mostra que as manchas naturais de vegetação mediterrânica variam consoante o grau de aridez e a topografia, alterando a estrutura arbórea para arbustiva, verificando-se predominância de espécies de carvalho de folha persistente em zonas com maior seca, em detrimento das resinosas. Resultados de um projecto recente desenvolvido no nosso país (Adapt for Change), mostram que há aspectos críticos a ter em conta, nomeadamente, a topografia, a exposição, o compasso entre árvores, as boas práticas de conservação do solo e da água. Realça, sobretudo, a redução do custo-benefício das reflorestações através da transferência de conhecimento entre promotores florestais, investigadores e proprietários. Se uns difundem o conhecimento científico, os outros mostram a sua experiência de anos e, especialmente, o que pretendem explorar. A visão holística dos problemas e o modo integrador com que os ecólogos podem prever soluções permite-lhes ter papel relevante para assessorar, participar e aconselhar. Isto não pode, nem deve, ser ignorado.

Nas próximas décadas, Portugal terá de saber gerir melhor o património natural. Depois da destruição, não se pode perder a oportunidade de mudar a paisagem florestal. Seguindo as indicações europeias, Portugal deve procurar desenvolver uma ligação harmoniosa entre o social, ecológico e económico, estabelecendo o continuum ecologia-economia. Os níveis de CO2 na atmosfera, para o qual estes incêndios muito contribuíram, sobem assustadoramente.

A biodiversidade está a desaparecer por homogeneização de paisagens e por excesso de urbanismo. Aliada à recuperação da dignidade das pessoas há a necessidade da reformulação da paisagem, da sua diversificação, de acordo com a geografia física e social, com novos modelos de exploração económica. Isto significa facilitar o associativismo entre proprietários e motivar a transferência de conhecimento entre investigadores e os donos dos terrenos, à semelhança do que Espanha faz há muito. São novos desafios que o Estado deve apoiar, valorizando os múltiplos recursos que a floresta pode oferecer, estimulando, simultaneamente, modelos diversificados de exploração económica e de conservação da natureza e criando mecanismos de responsabilização ao nível das comunidades locais, através da dinamização de associações de proprietários.

A recuperação de toda a área ardida é um assunto sério que não pode ser tomado de forma avulsa. Tem de ser delineada sem mais delongas: olhar o passado, trabalhar no presente para prevenir o futuro. Terá de haver a conjugação de equipas, ser transversal a ministérios e autarquias. A estratégia está também na adopção de medidas baseadas em soluções naturais pois permitem, através da sua abordagem holística, a reabilitação de estruturas florestais resilientes, diversificadas e adaptadas às alterações climáticas, com gestão ecológica sustentável. O Governo terá de saber ler estes sinais e ouvir os especialistas. Os cientistas terão de perceber qual o seu papel: apoiar ou criticar assertivamente para valorizar ou procurar alterar o rumo do empreendimento. Já Churchill dizia: “Falhar não é fatal: é a coragem para continuar que conta.” Está Portugal preparado para assumir essa coragem, ou será mais uma oportunidade perdida?

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