Lembram-se de Amaro da Costa?

A credibilidade das Forças Armadas depende de uma explicação séria e cabal do mistério de Tancos.

O cómico, o ridículo, o patético e o incrível em torno do caso de Tancos têm sido amplamente comentados. Ouvimos os responsáveis, do primeiro-ministro ao ministro da Defesa e a acabar nas altas patentes das Forças Armadas (FA), e não se acredita: após declarações “confusas”, os chefes das Forças Armadas remetem-se a um profundo silêncio; o primeiro-ministro aguarda inquéritos e relatórios para — não se sabe quando — nos fornecer uma historieta; o ministro da Defesa, como bem disse Vasco Lourenço, desde logo e antes do mais nunca deveria ter sido nomeado para o cargo. Mas Vasco Lourenço foi mais longe, abrindo uma caixa de Pandora: não é necessária nenhuma perspicácia especial para perceber que o ex-capitão de Abril e actual coronel do Exército considera que o assunto de Tancos é em primeiro lugar um assunto que diz respeito às FA, isto é, que os principais responsáveis são as chefias militares e que, portanto, cabe a estas averiguar e explicar ao público português a chave do misterioso desaparecimento (roubo?) de uma significativa quantidade de armamento do Paiol Nacional de Tancos (DN, 10.07.17).

Seriam necessárias muitas páginas para recapitular as sucessivas contradições e diferentes versões dadas por várias autoridades a respeito desta espécie de enredo policial que continua à espera de um Philip Marlowe, um Hercule Poirot ou um George Smiley que nos revele o nome do ou dos criminosos — se de crime realmente se tratou. Certo, certo — até este momento — é apenas que no Exército, no Governo e no Parlamento se instalou uma imensa salgalhada; a série de hipóteses explicativas do acontecido vai desde o roubo comprovado até à mais radical dúvida metódica, que admite que o material desaparecido possa até nunca ter dado entrada no paiol! O cidadão comum, perplexo pelo que vê e ouve, sai de toda esta barafunda com a impressão de que alguém (ou “alguéns”...) ataranta deliberadamente a opinião pública pelo oprobrioso motivo de que tem qualquer coisa muito grave a esconder. Entre as múltiplas hipóteses aventadas, surgiram logo no início — quando o facto do roubo era ainda incontestado — rumores de que armamento e munições teriam sido desviados para tráfico de armas ilícito, uma actividade clandestina que teria já uma considerável tradição no seio das FA a coberto de comprometedoras cumplicidades. A vinda a lume da continuada fraude no abastecimento das messes militares, com conivência e proveito de altas patentes, não pode senão agravar a suspeita de que até mesmo as Forças Armadas portuguesas não serão imunes à corrupção.

E perante tudo isto, com razão ou sem ela, é impossível não vir à memória a morte trágica de Adelino Amaro da Costa no desastre de Camarate, a 4 de Dezembro de 1980, quando era ministro da Defesa Nacional no VI Governo Constitucional, presidido por Sá Carneiro, que por mero acaso aproveitara à última hora o Cessna de Amaro da Costa com destino ao Porto. “Não se conseguiu apurar ainda se foi um desastre ou um assassinato [...], uma das vergonhas maiores da Justiça no regime democrático” (Mário Soares, prefácio a Adelino Amaro da Costa: Histórias de uma vida interrompida, 2010). Num capítulo com título interrogado — “O homem que sabia de mais?” — pode ler-se que no Verão de 1980, embora já muito habituado às perseguições políticas durante o PREC, Adelino confidenciara a Marcelo Rebelo de Sousa “que corria perigo de vida, que recebeu ameaças e andava armado. [...] que estava a descobrir esquemas relacionados com o tráfico de armas” (p.275). Amaro da Costa andava a investigar o Fundo de Defesa Militar do Ultramar, que nunca fora extinto e continuava activo seis anos após o fim da guerra colonial, com “um orçamento de milhões de contos por ano”, segundo confidenciou também a Freitas do Amaral: “ [Ele] suspeitava de que houvesse graves irregularidades, com vendas de armas e munições para a Guerra Irão-Iraque” (p.276), procedentes da Bélgica, transportadas de camião para Portugal e “embarcadas clandestinamente num navio com pavilhão da Grécia” a partir de Setúbal (p.278).

Não, não estou a sugerir que se abra novo inquérito ao chamado desastre de Camarate: seria tentar esconder uma sucessão de ridicularias com outra ridicularia ainda maior. Pretendo apenas dizer que a credibilidade das Forças Armadas (e do actual Governo) se encontra por completo dependente de uma explicação séria, cabal e convincente do mistério de Tancos. Os governos passam, as instituições ficam — se merecerem o respeito e a confiança dos cidadãos. A Instituição Militar tem que provar que merece esse respeito e essa confiança, sob pena de passar a ser encarada como mais uma organização de crime encapotado.

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