Carris: “Eles querem mudar tudo e não conseguem mudar nada”

No primeiro aniversário da mudança de tutela da Carris para a Câmara de Lisboa, o PÚBLICO foi falar com os utentes. As críticas abundam, mas há um elogio: a redução do preço dos passes para idosos. E alterações no serviço? “Até que há: algumas paragens mudaram de sítio.”

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SR Sandra Ribeiro
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À saída do metro da Alameda, junto à Igreja Universal do Reino de Deus, já passaram dez minutos da hora prevista no placard para a chegada do 718. À medida que o tempo passa – e o autocarro não aparece –, as pessoas vão-se acumulando. Afinal, fugir à hora de ponta não equivale a fugir de uma imensidão de gente.

Nasser, cozinheiro de 19 anos, reconhece que é todos os dias assim. “Ando de autocarro desde que me lembro, penso que desde os 10 anos. E nunca vi o serviço melhorar – até é possível mesmo que tenha piorado recentemente”, afirma.

As queixas são muitas, repetidas por diferentes vozes. No entanto, Nasser evita generalizar e diz que o funcionamento em cada trajecto depende do motorista e da carreira em questão. “Por vezes chego a esperar uma hora pelo autocarro e acontece que, mesmo depois de o transporte estar atrasado, o motorista sai do autocarro para fumar. É uma falta de respeito”, denuncia o jovem.

Nasser diz ter ouvido anúncios acerca de medidas que iam ser tomadas, mas afirma não sentir as melhorias no serviço. “Eles querem mudar tudo e não conseguem mudar nada”, remata. 

A verdade é que um ano depois do acordo assinado entre o Ministério do Ambiente e a Câmara Municipal de Lisboa, a 21 de Novembro de 2016, para que toda a gestão da Carris passasse a ser da responsabilidade da autarquia, os utentes são quase unânimes a dizer que nada parece ter melhorado.

Na altura do acordo, Fernando Medina, presidente da autarquia, garantiu que haveria melhorias “já no primeiro semestre de 2017” e, em Fevereiro de 2017, ao ser oficializada a mudança da tutela, foi o primeiro-ministro, António Costa, a expressar a garantia de que a cidade ganharia muito e que a mudança de gestão permitiria que os utentes tivessem muito melhor qualidade de serviço.

“Vejo algumas mudanças”, concede Hélder, reformado de 66 anos sentado na paragem do autocarro que rumará aos Restauradores, ao lado da sua mulher, Edite, de 65. “Algumas paragens mudaram de sítio e o nosso passe ficou mais barato”, revela. “Mas o sistema está igual, o tempo de espera continua a ser imenso e a maioria dos painéis informativos não funcionam, o que dificulta saber quando vêm os autocarros”, acrescenta logo Edite, sem contemplações.

De facto, segundo contas efectuadas pelo PÚBLICO há cerca de um mês, existem pela cidade de Lisboa cerca de 100 painéis inactivos, o que torna o serviço ainda mais imprevisível do que já se apresenta.

Ao chegar o autocarro 718, a uma hora inexistente no horário afixado na paragem, a fila forma-se à sua porta e é evidente que o transporte vai encher. Lá dentro, não há qualquer anúncio da próxima paragem, algo que Miguel, de 23 anos, aponta como uma das maiores falhas do serviço.

“Quando me desloco a sítios que não conheço, tenho muita dificuldade em saber quando premir o botão de paragem, pois não sei em que paragem estou”, diz, agarrando-se firmemente ao poste mais próximo. “Por vezes, quando uso o serviço de sms para saber quanto tempo falta até sair, respondem-me com a paragem ou o tempo errado”, ri-se, mas visivelmente sem ter achado graça nenhuma à piada. Para o estudante, que utiliza a Carris para se deslocar há cinco anos, a pior faceta do serviço é o ser pouco confiável e instável. “Não noto diferença nenhuma no último ano, infelizmente”, conclui.

Coincidência ou não, no primeiro semestre deste ano, de acordo com os dados recolhidos pelo PÚBLICO junto das empresas nacionais de transporte, a Carris sofreu uma ligeira descida no número de passageiros, de 0,8% em termos homólogos, chegando a 61,9 milhões de viagens.

Ana, de 21 anos, contrariou esta tendência, já que apenas é cliente da empresa há um mês – uma experiência que não tem estado a correr bem, sobretudo porque não tem outra alternativa de transporte. “O que mais me chateia é que apanho o 750 em Algés para vir até aqui, ao Oriente, e apesar de dizer no horário que a última paragem é aqui, por vezes o autocarro termina o trajecto no Campo Grande ou em Cabo Ruivo”, afirma, desolada. “Muitas vezes nem chega a aparecer nenhum veículo e chego muito atrasada às aulas.”

A queixa dos atrasos é comum. Josefa, operadora de caixa de 30 anos, diz que por vezes vem meia hora mais cedo e mesmo assim acaba por chegar atrasada, algo que o chefe não desculpa. “Não sei conduzir e preciso mesmo de chegar a sítios inacessíveis por outros transportes. O autocarro é a única alternativa.”

Chega entretanto o seu autocarro, 16 minutos atrasado, que ainda demorará um pouco mais de 30 minutos a chegar ao seu destino e, portanto, mais uma vez não chegará a horas ao seu turno.

O reinado dos turistas

Mas a Carris não é só autocarros e, quando se muda de meio de transporte, também os problemas mudam. E agravam-se.

Do Martim Moniz aos Prazeres, o eléctrico 28 parece passar pelos séculos de história da cidade. A embarcar no Chiado, Álvaro, assessor de profissão e que realiza aquele percurso há dez anos, nota que a afluência de passageiros aumenta a cada ano que passa. “No Verão é ainda mais complicado e, simultaneamente, parece haver menos eléctricos.”

A média de passageiros desta carreira atingiu os 4,6 milhões nos últimos quatro anos, de acordo com a Carris. Às 11h, o transporte transborda pelas costuras e todos, à excepção de Álvaro, são estrangeiros, algo que se mantém durante todo o percurso. Quando chega às diferentes paragens, há uma notória impossibilidade de entrar, pelo que os novos passageiros têm de se acotovelar para o conseguirem fazer.

O percurso é, no entanto, cénico. O historiador José-Augusto França deu conta, ao dedicar uma crónica à carreira, que ela abrange “dez igrejas, oito conventos que foram, meia dúzia de prédios de destaque, seis jardins, uma dezena e meia de estátuas, dez teatros e cinema de que só restam dois”, tornando a experiência muito apelativa para os turistas.

O problema põe-se para os moradores da área, muitos deles de idade avançada e que, nalguns casos, não têm outro modo de transporte ou a alternativa fica-lhes mais distante. Manuel, de 73 anos, habita perto da zona da Graça, mas hoje em dia deixou de conseguir entrar nos eléctricos que sempre usou. “Utilizo a Carris há cerca de 55 anos. Antigamente era ávido utilizador de eléctricos, mas agora que estes estão sempre apinhados uso os autocarros”, afirma, agarrando na sua bengala com as duas mãos.

Habitante de Lisboa toda a sua vida, utilizou eléctricos para ir para a faculdade e depois para o emprego. Agora, com a subida de preços para o transporte que considera “de turistas”, conforma-se com os autocarros que, além de serem poucos, param mais longe de sua casa.

Já em Campo de Ourique, a última paragem onde é feito o transbordo, Ana, de 72 anos, espera com o seu neto o eléctrico 25, que os levará até à Praça da Figueira. Enquanto ajusta a mala à volta do ombro, desvenda um truque: “Evito apanhar o 28, pois é realmente insuportável, mas a esta hora começa a ficar mais razoável – é que os turistas vão almoçar.”

Ana comenta que o serviço não se adaptou ao aumento de estrangeiros na cidade: “Tinha de ter em conta o aumento de gente que chega de fora. Como está, é um serviço mal organizado, uma pena.”

As familiares carreiras de bairro

O – até agora único – sucesso na nova concessão da empresa parecem ser as novas carreiras de bairro. Introduzidas a 11 de Julho deste ano com o intuito de agilizar as deslocações dentro das freguesias, têm uma frequência média de 30 minutos, que passa a um ritmo médio de hora a hora aos fins-de-semana. Um horário que é escrupulosamente cumprido.

Na carreira 32B, com percurso circular na zona das Amendoeiras – ligando o ISEL a vários pontos do bairro de Chelas –, o autocarro chega a horas e, apesar de não dizer o tempo de espera no painel informativo, Paulo, reformado de 66 anos, não parece incomodado, já que apenas se dirige ao talho. “Parece um autocarro da escola”, ri-se o idoso, referindo-se ao tamanho do transporte que chegou. Ao entrar, é imediatamente cumprimentado pela condutora, Ana, que parece conhecer todos os utentes que transporta. 

O consenso é que o serviço funciona melhor do que os autocarros normais e que foi uma iniciativa que teve êxito. São poucas as paragens em que a carreira não pára e todos se conhecem por nome, tal como todos se juntam à conversa colectiva que se gera no caminho. O grupo de idosos vê esta como uma boa iniciativa, em que se respira um ambiente familiar.

No início do ano, Tiago Farias, presidente do conselho de administração da Carris, disse que as carreiras de bairro servirão sobretudo a população idosa, que está a aumentar, permitindo-lhe “ir ao mercado, à farmácia, ir ter com os companheiros ao parque municipal, etc.”

No total, o trajecto perfaz os 19 minutos. A meio caminho, num local sem paragem, a condutora abranda o veículo, pois vê uma passageira habitual, como dificuldades de mobilidade, a tentar chegar à paragem, que ainda está longe. Ana pára o autocarro e chama pela sra. Emília, dizendo-lhe para entrar. O alívio da idosa é visível. A atenção da motorista poupou-lhe um esforço imenso para vencer os 700 metros que faltavam até à paragem.

Texto editado por Ana Fernandes

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