Jaime Batalha Reis "A anarquia era integral: não havia nem polícia, nem magistrados, nem tribunais, nem leis"

Enviado pelo Governo à Rússia, em 1912, o diplomata só consegue de lá sair a 27 de Abril de 1918, seis anos depois. Apanhado pelo turbilhão da história, com o início da Primeira Grande Guerra e a revolução de Outubro, Batalha Reis é testemunha de acontecimentos únicos e deles dá conta em depoimento

Jaime Batalha Reis não conseguiu sair da Rússia durante seis anos
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Jaime Batalha Reis não conseguiu sair da Rússia durante seis anos DR
Uma das casrtas do diplomata dando conta de circunstâncias difíceis
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Uma das cartas do diplomata dando conta de circunstâncias difíceis DR

Serie A

Reservado junho/setembro, 1918

Exmo. Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros

A presente comunicação, relatando a minha saída da Rússia, será, em carater e forma, inevitavelmente desusada, tratando de factos muito extraordinários, senão únicos, na vida oficial de um diplomata português.

Ignoro até que ponto esse Ministério conhece qual foi a situação do corpo diplomático em Petrogrado durante os últimos tempos revolucionários, por ignorar quais, entre os meus telegramas e ofícios, lograram chegar a Lisboa, havendo-se interrompido, quase completamente, as comunicações com a Suécia, desde o começo da guerra civil finlandesa.

Como é sabido, os Governos da primeira revolução russa, chamados “provisórios”, mas mais ou menos internacionalmente reconhecidos, mostraram-se sempre incapazes de criar e manter qualquer forma de ordem ou legalidade em Petrogrado e na Rússia.

Depois da revolução bolchevique dirigida por Lenine e Trotsky, a anarquia tornou-se quase completa. E digo quase, porque, oficial e ostensivamente, o Governo de facto russo nunca deixou de reconhecer, apesar de alguns episódios excecionais, as qualidades e imunidades dos membros do corpo diplomático, que aliás nunca lhe estiveram formalmente acreditados.

A situação dos Diplomatas foi porém, na realidade sempre, mas sobretudo nos últimos tempos, muito ameaçada e perigosa.

Houve, por mais de uma vez, começos de invasão nas embaixadas de Espanha, Inglaterra e Itália, nas legações da China, Dinamarca e Bélgica. Dois Secretários da legação da Roménia foram insultados e batidos num tramway, o Ministro da Itália atacado e roubado às 10horas da noite num dos lugares mais frequentados de Petrogrado (em frente do Hotel da Europa), saqueada a casa de um dos seus secretários.

A casa onde se achavam o Consulado e, em parte, os arquivos da legação de Portugal, por isso dependência oficial desta e sempre, como tal, reconhecida pelas autoridades superiores do Governo bolchevique, foi, entretanto, muita vez parcialmente invadida por soldados, por guardas vermelhos e operários, que se apresentavam como em cumprimento de missões oficiais, mas realmente para roubar.

A legação de Portugal, onde eu e minha família habitávamos esteve por diferentes ocasiões protegida por soldados russos. Os que, no começo da primeira revolução, nos guardavam eram das Equipagens navais da Guarda Imperial e tinham acabado, quando vieram guardar-nos, de assassinar quase todos os seus oficiais. Quando, por serem soldados os próprios que assaltaram as casas, roubavam e muitas vezes matavam os moradores, preferimos abandonar este meio precário de segurança, foram minhas filhas, e fui eu, que, dividindo entre nós as horas da noite, velávamos pela nossa própria segurança até ser manhã clara.

A atitude dos corpos diplomáticos, permanecendo na capital da Rússia, continuando a exigir o respeito de todas as imunidades e privilégios da extra territorialidade, sem entretanto nunca reconhecerem o último Governo revolucionário, exasperava os bolcheviques.

Todos os dias chegavam às Legações notícias de ameaças contra elas e seus membros, publicadas nos jornais e proferidas nas inumeráveis reuniões públicas.

Por duas vezes o Embaixador dos Estados Unidos, decano do corpo diplomatico, recebera mensagens escritas e assinadas pela junta diretora do Centro Anarquista, tornando as vidas dos diplomatas em Petrogrado responsáveis por tudo que, nos países que eles representavam, fosse feito contra quaisquer anarquistas. Como exemplo, que por assim dizer, me tocou de perto, exemplo, um entre milhares, do estado de toda a Rússia, notarei que, em dezembro de 1917, soldados assassinaram, com sua família, Mr. Goremykine, velho de mais de 80 anos, um dos últimos Presidentes de Conselho de Ministros do Imperador, proprietário da casa da legação de Portugal, por mim habitada até à nossa saída da Rússia. Os assassinos entraram, às 6 horas da tarde, na sua casa de jantar, enforcaram numa porta Mr. Goremykine, estrangularam sua mulher, mataram, a tiro, o General Oftchinikov seu genro, e feriram sua filha, que sobrevivendo, depois enlouqueceu. Estes e todos os assassinatos, ficaram sempre impunes. A anarquia era integral: não havia nem polícia, nem magistrados, nem tribunais, nem leis.

Cinco meses (outubro a fevereiro) durou no seu estado completo esta situação, mas nunca as missões diplomáticas em Petrogrado pensaram que ela bastasse a fazê-las a abandonar os seus postos.

Só um momento, algumas legações Aliadas entenderam que partiriam, se o governo bolchevique, tendo prendido Mr. Diamandy, ministro da Roménia, não cedesse logo, pondo-o em liberdade, às justas e coletivas exigências do corpo diplomático.

Quando, nos fins de 1916, o embaixador de Inglaterra, Sir George Buchanan, se tornou, pela partida do Visconde Motono, embaixador do Japão, decano do corpo diplomático, algumas vezes foram os chefes de missão convocados a reunir-se, e a deliberar juntos, sobre os acontecimentos correntes.

Começaram então as grandes lutas entre os partidos revelados e produzidos pela Revolução russa.

Mas essas reuniões só se tornaram mais frequentes quando, após Outubro de 1917, as Nações Aliadas da Rússia e as neutras, sem reconhecerem de facto a legitimidade dos diversos Governos, continuaram a manter representação diplomática em Petrogrado.

Na primeira das reuniões das missões Aliadas decidiu-se que estas não praticassem ato algum que não fosse previamente comunicado a todas, discutido e decidido em comum, devendo conservar-se estritamente secreto, para todos os que não fossem os respetivos Governos, o que em tais reuniões se passasse.

Quando, pela partida do Embaixador de Inglaterra, doente na verdade havia muito, e oficialmente apenas ausente por esta razão, o decanato e presidência do corpo diplomático passaram ao embaixador dos Estados Unidos, Mr. David Francis, as reuniões tornaram-se mais frequentes.

Em mais de uma delas se havia discutido a oportunidade, para as legações, de se retirarem de Petrogrado, ou mesmo de saírem da Rússia. A doutrina que, de acordo com as instruções enviadas às embaixadas pelos respetivos Governos, havia sido assente, quase sem discussão, fora a de que as representações diplomáticas se conservassem na capital, enquanto na Rússia existisse qualquer elemento de resistência contra a ação alemã, ou qualquer possibilidade de produzir ou provocar uma tal resistência. Assim, em todas as reuniões em que esse assunto fora discutido se decidira sempre permanecer em Petrogrado.

Alguns representantes supunham (e eu era um deles), que o Governo bolchevique dificultaria a nossa saída da Rússia, conservando os diplomatas como que em reféns para futuras eventualidades.

No mês de janeiro de 1918, os alemães dominavam por muitas formas, ostensivamente já, Petrogrado.

Tornara-se evidente, depois dos últimos acontecimentos militares alemães (entrada em Riga, ação directa sobre o Golfo da Finlândia, ocupação de Pskov, demonstração até Bologoye, sobre as comunicações com Moscovo), que os exércitos alemães ocupariam Petrogrado quando quisessem.

Era pois necessário saber se as legações das Potências Aliadas contra a Alemanha deveriam correr o risco, que a alguns chefes de missão parecia eminente, de serem aprisionados pelos soldados das Potências centrais.

Pela minha parte nunca considerei que este risco fosse próximo: os alemães e os austríacos eram, de facto, ostensivamente mesmo, e pela simples presença de algumas missões oficiais, senhores do único Governo que, na Rússia, tinha força e eram senhores da sua capital em Petrogrado. Enviar tropas a esta cidade importaria a ocupação militar efetiva de uma região extensíssima, no meio de uma população, como a de Petrogrado, densa e esfomeada; importaria a marcha, a alimentação e municiamento, sobre vastos territórios, então gelados, e, dentro de dois meses mais, cobertos de água e lama. A revolução russa fora, com efeito, pelo contrário, fomentada pelos alemães, como meio de não precisarem ter tropas na Rússia. A minha previsão era justa, pois que, 5 meses depois, em pleno verão, ainda as tropas imperiais não ocupavam Petrogrado.

Este meu modo de ver, fiz, por mais de uma vez, sentir aos meus colegas.

Mas nenhuma reunião geral foi nunca convocada para discutir este, mais que todos, importante assunto e resolver sobre ele, se bem que os chefes de missão se tivessem nos últimos dias várias vezes reunido para meras questões de sustentação das suas imunidades diplomáticas e das imunidades dos membros das colónias estrangeiras.

Inesperadamente, uma manhã, o Encarregado de Negócios de Inglaterra, Mr. Lindley, comunicou-me, em termos muito concisos e reservados, ao telefone, haver-se decidido partir, em poucos dias, de Petrogrado. Com efeito, as embaixadas dos Estados Unidos, de Inglaterra, de Itália, de França e do Japão, aliás, ao que parece, sem instruções precisas dos seus Governos, haviam tomado essa resolução, por si mesmas e pelas outras legações aliadas, sem com estas se haverem antes reunido e concertado. Mas nem a forma de partir, nem o lugar de destino exatamente se definiram até ao último momento.

 

Pré-publicação de Dos Romanov a Lenine, editado pelo Instituto Diplomático, Associação dos Amigos do Arquivo Histórico-Diplomático e com o apoio do Instituto de História Contemporânea

 

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