Tragicomédia no Zimbabwe

Ao recusar demitir-se, Mugabe está no fundo a relevar a coerência que sempre o manteve preso ao poder sem qualquer pudor nem respeito pela população.

Não é novidade que as democracias africanas possuem grandes originalidades. Que as ditaduras também as tenham já é mais surpreendente, mas o surreal parece mesmo ter tomado posse do Zimbabwe. Aos noventa e três anos, Robert Mugabe ainda não está preparado para largar o poder que detém desde 1980, como fez questão de afirmar em directo na televisão – tendo por companhia os autores do golpe.

A cena seria cómica, se não fosse trágica: um Presidente deposto a dizer que não sai quando toda a gente esperava que tivesse sabido aproveitar a oportunidade de abandonar o poder com a dignidade concedida a um ditador que nunca se preocupou com o seu povo. Ao recusar essa opção, está no fundo a revelar a coerência que sempre o manteve preso ao poder sem qualquer pudor nem respeito pela população. E obriga Edward Mnangagwa, que gosta de ser conhecido como “Crocodilo”, a continuar à espera de tomar o poder a que sente ter direito depois de anos na sombra do velho ditador.

Infelizmente, nada disto deverá mudar o essencial no Zimbabwe: a riqueza do país continuará a ser controlada por uma elite que não cede o seu poder, mantendo os privilégios longe da jovem população que tem de lidar com a incompetência e a corrupção da classe dirigente, seja ela de Mugabe ou de Mnangagwa. Ainda não é desta que a democracia vai chegar a Harare.

Está longe de ser caso único no continente: no Togo a mesma família gere o país há meio século; no Gabão é o mesmo, tendo o poder passado de pai para filho; no Congo, os Kabila pegaram nos restos da ditadura de Mobutu e lançaram mais uma dinastia familiar; o mesmo modelo está a ser preparado na Guiné Equatorial com o poder a passar de pai para filho, na família Obiang.

Sinónimo destes processos ditatoriais são duas outras características: as riquezas acumuladas por quem manda e a miséria crónica das populações que padecem destas lideranças. E não foi a globalização a ajudar os povos do continente: a fome de recursos naturais da China ajudou a perpetuar estes regimes, que já contavam com a aceitação mais ou menos tácita das democracias liberais europeias. Tal como em tempos o Reino Unido fez com Mugabe, também Portugal vai ajudando o regime de Obiang a comprar um módico de credibilidade internacional através da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Mas a política do mundo real dá pouca importância a essa coisa dos princípios. Viva a tragicomédia, então.

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