Compra de comboios para a CP contradiz plano ferroviário nacional

Governo anunciou concurso para aquisição de material de dupla tracção (eléctrica e diesel) que só chegará quando as linhas já estiverem electrificadas.

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Dentro dos prazos normais, um concurso público para a compra de comboios demorará cerca de três anos até que a CP os recepcione fau fabio augusto

Ou a CP não confia nos planos da Infraestruturas de Portugal para electrificar 334 quilómetros de linhas férreas até 2020, ou o próprio Governo já percebeu que tal promessa não será cumprida. De outra forma, não se entende por que o plano de aquisição de comboios da CP – anunciado pelo ministro Pedro Marques no Parlamento – contempla material bi-tracção que lhes permite circular indistintamente em linhas electrificadas e não electrificadas.

Dentro de três anos, segundo o plano Ferrovia 2020, anunciado pelo Governo em Fevereiro de 2016, estarão electrificadas a totalidade das linhas do Minho e do Algarve, bem como grande parte da linha do Douro e metade da linha do Oeste.

É um projecto ambicioso que se propõe distribuir a catenária (cabo de alta tensão que alimenta os comboios com energia eléctrica) ao longo de 334 quilómetros de via férrea.

A rede ferroviária electrificada, que actualmente é de 1634 quilómetros, atingirá assim os 1968 quilómetros, ficando de fora apenas os troços Régua - Pocinho, Caldas da Rainha - Louriçal e Casa Branca - Beja. Três troços pequenos que, segundo fontes da Infraestruturas de Portugal, serão naturalmente contemplados com a electrificação, em fase posterior, no horizonte 2030.

Perante isto, questiona-se por que motivo vai a CP comprar comboios que são mais caros uma vez que incorporam tecnologia que lhes permite circular com tracção eléctrica quando há catenária e, quando não há, baixar o pantógrafo e prosseguir com tracção diesel.

Além de exigir um investimento superior, este material circulante tem também custos de manutenção mais elevados. Os comboios têm um período de vida útil de 40 anos, pelo que, a serem adquiridos, e cumprindo-se a calendarização do Governo para a modernização de vias férreas, estes serão claramente subaproveitados por já quase não existirem linhas onde se circule a diesel.

Dentro dos prazos normais, um concurso público para a compra de comboios demorará cerca de três anos até que a CP os recepcione, que coincide precisamente com a conclusão dos 334 quilómetros de linhas que o Governo anunciou que estariam nessa altura electrificadas.

Questionado pelo PÚBLICO, o Ministério do Planeamento e das Infraestruturas diz que o material a comprar “destina-se às linhas do Douro, Oeste e Alentejo que, no âmbito do plano Ferrovia 2020, terão troços electrificados e outros não electrificados”. Esta opção, diz fonte oficial do ministério, “garantirá uma maior eficácia da operação, permitindo oferecer um melhor serviço aos utentes e contribuindo para que a ferrovia constitua um factor de coesão social, tal como tem vindo a ser defendido pelo Governo”.

A CP, por sua vez, explica que o material bi-modal permite eliminar transbordos naqueles troços (Caldas-Louriçal, Casa Branca-Beja e Régua-Pocinho) e acrescenta que deixará de existir a necessidade de alugar material diesel à Renfe. Uma necessidade que, de qualquer modo, deixará de existir à medida que novos troços forem electrificados.

Nem o Governo nem a CP explicaram por que motivo se insiste no material de dupla tracção para uma altura em que, supostamente, o mesmo já não será necessário.

Aliás, na proposta de alteração ao Orçamento do Estado para 2018, apresentada pelo Partido Socialista, é reiterado que "em 2018 a CP inicia os processos de aquisição e de reparação do material circulante, nomeadamente bi-modo e de topo de gama eléctricos".

Por parte da CP, contudo, há razões para não acreditar nas promessas da tutela tendo em conta o histórico das últimas décadas. Os anúncios governamentais de electrificação das linhas sucederam-se em vários mandatos sem que tenham sido realizados, mas condicionando a gestão da empresa que, perante a expectativa da energia eléctrica, não renovou a frota de comboios a diesel e chegou hoje ao ponto de ter de alugar automotoras a Espanha para poder manter a sua oferta. Pior: diariamente são suprimidos comboios (sobretudo no linha do Oeste e no Alentejo) porque as composições avariam e não há outras para as substituir.

Há mais razões que fazem a transportadora pública redobrar as cautelas e jogar pelo seguro: as próprias electrificações em curso estão atrasadas ou ainda nem sequer começaram, estando a calendarização anunciada pelo Governo em Fevereiro de 2016 bastante ultrapassada. É, pois, já garantido que o plano de investimentos não será cumprido, pelo menos até 2020, pelo que o material híbrido poderá, realmente, vir a ser útil à CP para poder operar em troços electrificados e não electrificados.

A empresa e o executivo sabem-no, mas nenhum dos dois quer assumi-lo.

O plano que a CP entregou ao Governo prevê a aquisição de 35 comboios, dos quais 10 para o longo curso e 25 para o serviço regional e urbano num investimento que ronda os 340 milhões de euros.

Linha do Vouga à margem da modernização

Fora de quaisquer planos de electrificação e de renovação dos comboios está a linha do Vouga, na qual já só há serviço de passageiros entre Espinho e Oliveira de Azeméis e entre Aveiro e Sernada do Vouga (Águeda).

As velhas automotoras a diesel que ali circulam não têm como ser substituídas porque são de via estreita, não estando prevista nenhuma compra.

A Infraestruturas de Portugal tem estudos sobre a viabilidade de passar para via larga o troço Espinho – Oliveira de Azeméis colocando-o na malha suburbana do Grande Porto, mas não há, para já, quaisquer decisões sobre essa matéria.  

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