O CR7 do ano 147

Na Antiguidade já havia atletas a ganharem fortunas imensas e a maneira mais provável de um jovem deste canto do Império se tornar famoso já era também através do desporto.

Faz agora 1870 anos que começou a gozar a sua merecida reforma Caio Apuleio Diocles, um condutor de quadrigas (“auriga” ou “agitator”) nos hipódromos romanos do século II d.C. Para trás ficavam 24 anos e milhares de corridas, das quais terá vencido cerca de um terço. Era raro que um auriga durasse tanto tempo em atividade. Muitos morriam nas corridas. Outros afastavam-se cedo. Diocles mantinha-se a salvo durante a corrida e era célebre pela sua velocidade na ponta final, o que lhe permitiu ganhar 1462 corridas entre o início da sua carreira, aos 18 anos, e o fim da carreira, aos 42 anos.

As equipas de quadrigas eram designadas pelas suas cores — as mais importantes eram os brancos, os verdes, os azuis e os vermelhos — que eram conhecidas e seguidas por milhares de entusiastas em todo o império romano. Séculos mais tarde, aliás, as rivalidades entre elas atingiriam uma tal amplitude que chegará a haver no Império Romano do Oriente uma espécie de guerra civil entre os verdes e os azuis. O nosso Diocles terá começado a sua carreira com os brancos e depois passado para os verdes até que se estabeleceu definitivamente nos vermelhos. Nunca correu pelos azuis. Sabemos isso por uma célebre inscrição que sobrevive em Roma e que tem suscitado muito interesse histórico.

A razão principal para esse interesse está nos rendimentos de Diocles: segundo os autores da inscrição, ele teria auferido quase 36 milhões de sestércios durante a sua carreira. Estes números fazem dele o atleta mais bem pago da Antiguidade e, segundo um professor da Universidade da Pensilvânia, Peter Struck, o atleta mais bem pago de todos os tempos. Não é evidente fazer mais do que uma conversão aproximada do que seriam hoje 36 milhões de sestércios, mas uma vez que esse montante permitiria pagar todo o cereal para abastecer Roma durante um ano ou os salários de todos os soldados do exército romano durante dois meses, o professor Struck aventura-se a dizer que não estaria longe de doze mil milhões de euros (provavelmente o equivalente anual ao que o nosso Serviço Nacional de Saúde precisaria para funcionar, sem dívida).

É esta soma que garante a Caio Apuleio Diocles uma espécie de fama póstuma recorrente. De cada vez que há um novo atleta no topo da lista de atletas mais bem pagos do mundo, há sempre uma revista ou jornal que vai repescar as contas do professor Struck para demonstrar que, mesmo assim, esse atleta ainda fica longe dos rendimentos do mais rico corredor de quadrigas da Antiguidade. Assim aconteceu com o golfista Tiger Woods, aqui há uns anos. E este fim-de-semana com Cristiano Ronaldo, que é apresentado pelo Times de Londres como tendo obtido até agora apenas um décimo da fortuna do seu “compatriota” da Antiguidade.

Espera aí — compatriota? Pois, é aqui que a coisa fica ainda mais interessante para nós: segundo o Times, Diocles era “português” como Cristiano Ronaldo. Claro, Portugal não existia no século II d.C., mas rapidamente se percebe que Diocles era da província da Lusitânia. E confirma-se. Segundo alguns autores, Diocles terá nascido na capital Mérida, que hoje fica em Espanha. Mas, segundo os seus contemporâneos, Diocles era conhecido por ter passado a infância e juventude em Lamego e usava “Lamecus” como a sua alcunha profissional.

Caio Apuleio Diocles, o Lamecus, era portanto o Cristiano Ronaldo do século II d.C., pelo menos até encerrar atividade em 146 d.C., aos 42 anos (terá nascido em 104 d.C.). No tempo dele, os imperadores romanos eram nascidos também na Península Ibérica, mas na província da Baetica, de onde vieram Trajano e Adriano. Mas há coisas que se mantêm iguais: já havia uma cultura da celebridade pelo desporto, já havia atletas a ganharem fortunas imensas, o mundo conhecido era bastante mais “globalizado” (ou integrado) do que imaginamos — e a maneira mais provável de um jovem deste canto do Império se tornar famoso já era também através do desporto.

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