O risco de Marcelo

Ao insistir na insistência, passe o pleonasmo, o Presidente corre o risco de a corda se partir, tropeçar nos próprios passos e acabar por cair no vazio do descrédito.

Tornou-se explícita a nova atitude do Presidente da República de exercer pressão sobre o primeiro-ministro em público através da comunicação social como forma de mostrar que condiciona a sua acção e que exige resposta rápida aos acontecimentos e problemas do país. Fá-lo num duplo movimento: enquanto tira espaço de iniciativa ao Governo, aumenta os seus índices de popularidade perante os portugueses. O expoente máximo deste modo como Marcelo Rebelo de Sousa está a transformar o exercício da magistratura de influência, levando-o a novas formas até agora inéditas, surgiu esta semana em torno da indemnização das vítimas de Pedrógão Grande, do roubo de Tancos e do surto de Legionella.

Lembremos o filme dos acontecimentos. Segunda-feira à noite, o Presidente torna pública a decisão de aprovar o diploma do Governo que estabeleceu a indemnização das famílias das vítimas mortais nos incêndios de 17 de Junho. Na fundamentação da sua aprovação, Marcelo referiu a urgência da entrada em vigor. Mas, dando o passo em frente, aproveitou “para convidar o legislador, ou o regulamentador, a eventual reapreciação da matéria, em especial na parte respeitante aos feridos graves” – repetindo, aliás, uma ideia por si defendida antes dos incêndios de Outubro. Na terça-feira, é a vez de o primeiro-ministro, António Costa, ceder: “A nossa intenção é alargar esse mecanismo aos feridos graves.” Uma resposta imediatamente saudada pelo Presidente.

Decidido a não aliviar a pressão, na terça-feira Marcelo já tinha insistido em relação a Tancos e à Legionella. Elogiando o pedido de desculpas do ministro da Saúde, Marcelo defendeu ser “fundamental para tudo, quando há da parte de entidades públicas alguma coisa que falha, depois haver relatórios que apurem as responsabilidades”. E, não desarmando, lembrou o roubo das armas e munições do Exército para afirmar a sua convicção em que “há-de aparecer no final também, no caso de Tancos, quer a nível interno, quer a nível da investigação do Ministério Público, o apuramento daquilo que se passou”. Logo no dia a seguir, quarta-feira, voltou a estes dois temas e garantiu: “O Presidente da República não vai imiscuir-se naquilo que é a tramitação das investigações para que se não diga que está a criar qualquer empecilho ou qualquer limite. Simplesmente não se esquece. O Presidente da República tem uma memória de elefante, ele não se esquece.”

A nova forma de exercer os poderes do Presidente da República – ganhando um protagonismo inédito no regime semipresidencialista português – iniciou-se a 17 de Outubro através de uma comunicação ao país transmitida pelas televisões. Esta inovação foi por mim salientada a 21 de Outubro neste espaço, ao escrever que Marcelo, pelo modo e pelo conteúdo da comunicação ao país, “redesenhou o exercício dos poderes constitucionais do Presidente em Portugal. E afirmou-se como a válvula de segurança do regime e do sistema político – mostrou o que é ocupar o primeiro órgão de soberania”.

É certo que a importância da atitude assumida pelo Presidente no desempenho do seu mandato é facilitada pela existência de um governo de minoria e particularmente fragilizado neste momento. Mas ao exercer pressão sobre o Governo com muita regularidade, através de declarações à comunicação social – e não apenas no recato dos bastidores onde decorrem as conversas com o primeiro-ministro –, Marcelo está a esticar a corda da interpretação dos poderes constitucionais. Ao insistir na insistência, passe o pleonasmo, o Presidente corre o risco de a corda se partir, tropeçar nos próprios passos e acabar por cair no vazio do descrédito.

É que mesmo no actual momento de fragilidade do Governo pode dar-se o caso de o primeiro-ministro decidir não acatar as ordens do Presidente. E então, se subir o tom de confronto, o que fará Marcelo? Usará um de outros dois poderes constitucionais que assistem ao Presidente da República? Irá ao ponto de demitir o primeiro-ministro ou de dissolver a Assembleia da República?

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