Já não há austeridade? Então paguem

O famoso diabo é, e sempre foi, isto: a profunda consciência das limitações do país e dos seus problemas estruturais.

Vou contar-vos um segredo: o país não esteve à beira da falência em 2011 por mero acaso ou azar do destino. Não foi só por causa das auto-estradas de José Sócrates. Nem por causa das quedas dos bancos. Nem por causa das elites corruptas. Nem por causa da crise internacional. Tudo isso ajudou, certamente, e não foi pouco. Mas o país seria inviável mesmo sem Parque Escolar e sem Ricardo Salgado. É por essa razão que tivemos três intervenções do FMI em 40 anos. Logo abaixo das nossas lastimáveis elites e da sua vocação para a corrupção, há uma série de corporações poderosas, mais a grande massa dos trabalhadores do Estado e dos reformados, que foi crescendo ao longo do tempo por boas e por más razões. Esse Estado, sem profundas reformas, é insustentável. Ele pode ser alimentado durante alguns anos através do crescimento da economia, mas à primeira mudança de ciclo económico o país vai outra vez ao charco. Não é uma questão de “se”. É uma questão de “quando”.

O famoso diabo é, e sempre foi, isto: a profunda consciência das limitações do país e dos seus problemas estruturais, adicionado à paralisia reformista da actual solução de governo e à sua enorme tentação despesista. Quando se fala na impossibilidade de arranjar 600 milhões de euros para contar todo o tempo de serviço dos professores, a objecção que se escuta com mais frequência é esta: “Não há 600 milhões para dar aos professores, mas houve 4,9 mil milhões para salvar o BES, e mais 3,9 mil milhões para salvar a Caixa.” Sem dúvida que houve. Contudo, mesmo sem entrar em discussões sobre as particularidades do sistema bancário, convém notar que esses 600 milhões, ao contrário da capitalização dos bancos, não são one shot — é um compromisso que fica assumido e que tem de ser pago todos os anos. São 600 milhões em 2018, outros 600 milhões em 2019, mais 600 milhões em 2020, e por aí fora. Ao fim de dez anos são seis mil milhões. Ao fim de 20, 12 mil milhões. E isto só para descongelar nove anos de carreira dos professores. Como seria de esperar, a GNR já veio dizer que exige o mesmo tratamento. E de seguida virão os polícias, o exército, os enfermeiros, os médicos, os magistrados, os trabalhadores dos transportes.

As pessoas que apoiam estas reivindicações colocam frequentemente o tema em termos de “justiça” ou “injustiça”. Lamento muito: o problema não é moral. Claro que o descongelamento das carreiras é mais do que justo. Claro que retirar às pessoas direitos adquiridos é profundamente injusto. Claro que os professores têm toda a razão em desejar que nove anos da sua vida profissional não desapareçam no ar. Mas isto não é uma questão do que é bom versus o que é mau. É uma questão do que é possível (ou responsável) versus o que é impossível (ou irresponsável). É uma questão de escolhas e de como utilizar os recursos — finitos, convém recordar — do Estado.

Agora, numa coisa os funcionários públicos têm toda a razão: a conversa do fim da austeridade foi orgulhosamente assumida por António Costa desde o primeiro dia. E assim sendo, as pessoas só estão a exigir nas ruas aquilo que o primeiro-ministro lhes prometeu quando estavam em casa. A irresponsabilidade destas reivindicações não é de Mário Nogueira. A irresponsabilidade é de quem prometeu o que não devia, e de quem anda há dois anos a cavar buracos ao mesmo tempo que anuncia aos portugueses: “É para a piscina.” Não, não é para a piscina. São só mesmo buracos. Que todos acabaremos por pagar.

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