De Maiakovski a Putin

Estranho é na própria Rússia não se verem abertamente manifestações comemorando os 100 anos da Revolução de Outubro.

O espaço da Livraria Barata, na Avenida de Roma, no princípio dos anos 1960, era como o de um cubículo ou de uma cela de prisão. Não deveria chegar a sete ou oito metros de comprido por quatro de largo na sua parte mais ampla, logo à entrada, onde estava um pequeno balcão do lado direito com a caixa registadora. Ao fundo e ao centro, na parte mais estreita, duas estantes com livros, de costas uma para a outra. E, nas quatro paredes, prateleiras com livros até ao tecto. Dificilmente poderiam estar ali dentro mais de dez pessoas e, na parte mais estreita, só podiam circular duas. Mas naquele espaço diminuto existiam livros que não era possível encontrar noutras livrarias do país. A estação dos correios, que desde há muito se encontra ao lado da livraria, não existia. Em seu lugar estava o café Branco e Negro, onde paravam estudantes das colónias, seguramente universitários porque eram mais velhos do que eu, que terminava à época os estudos secundários no Liceu Camões. O café era também frequentado pelo escritor Alves Redol, que de vez em quando a PIDE vinha prender.

A livraria ganhou fama de vender livros proibidos e por isso era muito procurada, apesar do seu espaço exíguo. Por essa razão, também o seu proprietário seria preso algumas vezes pela PIDE. Eu passava por lá porque morava em Alvalade, frequentava o café Vavá, na parte em que havia bilhares na cave, onde mais tarde se instalou um banco, e fazia parte dos meus hábitos passear com os amigos pela Avenida de Roma. Tinha comprado o Canto General de Pablo Neruda, da Editorial Losada, de Buenos Aires, e o Romancero Gitano de Federico Garcia Lorca, da mesma editora, qualquer um deles difícil de arranjar, à época, sendo que o último, não pertencendo a um comunista, era no entanto de um poeta que foi assassinado pelos fascistas espanhóis logo no início da Guerra Civil de Espanha, possuídos pelos mesmos instintos ultranacionalistas dos que pedem agora na rua a prisão do governo catalão legitimamente escolhido em eleições livres.

Certo dia, ao entrar na livraria, o António Barata passou-me para as mãos um livro de dimensões fora do normal. Tratava-se de uma antologia, acabada de chegar, do poeta russo Vladimir Maiakovski, oriunda do Brasil e datada de Abril de 1963, um ano antes do golpe que instituiu uma ditadura militar no país. Eu hesitei porque o livro era caro e vivia apenas com uma curta mesada disponibilizada pelos meus familiares. Mas qualquer coisa me disse que estava ali algo de valioso no que respeitava à possibilidade de saber o que se tinha passado na Rússia durante a Revolução de Outubro de 1917. E efectivamente a obra, publicada pela Editora Leitura de S. Paulo, trazia um estudo muito completo sobre Maiakovsky na revolução, da autoria de um poeta brasileiro, já falecido, Emílio Carrera Guerra, seguido de uma antologia em português de alguns dos principais poemas do talvez mais importante poeta da revolução russa, que viria a suicidar-se em 1930. Além de poeta, também pintor, participou activamente no movimento artístico de avant-garde das três primeiras décadas do século XX na Rússia e na Europa, espoletado pelos expressionistas alemães, os modernistas e futuristas italianos, os impressionistas franceses, na pintura e na literatura, com o surrealismo em França, e a recém-nascida arte cinematográfica, na Europa e nos Estados Unidos, que em Portugal teve como principais protagonistas Almada Negreiros, Fernando Pessoa e o grupo da Orpheu. Maiakovski fazia parte das brigadas de agit-prop, que levavam a toda a Rússia, através de recitais de poesia e de cartazes promocionais, as novas sobre a recente revolução proletária que iria mudar o mundo, pensava-se, à escala planetária. Mas não só na Rússia ele viajou. Na América do Norte, incluindo o México, passou mais de seis meses, visitando Nova Iorque, Chicago e Detroit. Na antologia, o tradutor intitula Meu melhor verso o poema em que Maiakovsky descreve um recital em que lhe põem papeletas na mesa para recitar os poemas preferidos da assistência. Mas de súbito o secretário do jornal O Operário do Norte segreda-lhe algo que o faz saltar e gritar — “Camaradas: Os trabalhadores e as tropas de Cantão tomaram Xangai!” Então começa uma ovação que cresce em força durante cinco, dez, 15 minutos, parecendo um trovão cujo ribombar chegaria à China.

Outros artistas formaram o colectivo de arte de vanguarda que tinha nascido ainda antes de 1917 com Kandinsky, Chagall, Deineka, Malevich, que aderiram à revolução, produzindo obras altamente significativas do período que se estava a viver, como o da relação do homem com a máquina e das virtudes do desporto, que foram temas também dos futuristas em Itália e na Alemanha. Mas este movimento terminaria na já então União Soviética quando, em 1932, Estaline decretou que o único conceito de arte aceitável era o do Realismo-Socialista. Uma importante e detalhada exposição sobre este tema esteve em exibição em Londres, na Royal Academy of Arts, entre Fevereiro e Maio deste ano, intitulada Revolution – Russian Art 1917-1932.

Estranho é na própria Rússia não se verem abertamente manifestações comemorando os 100 anos da Revolução de Outubro. Putin investiu na juventude e por isso o país foi palco do XIX Festival Mundial da Juventude, entre 14 e 22 de Outubro, concentrando na estância balnear de Sochi mais de 20 mil jovens oriundos de 150 países, assinalando os 70 anos do primeiro festival, realizado em Praga, em 1947. Como excepção, a exposição no Museu Nacional de História Política da Rússia, em S. Petersburgo, mesmo junto à principal mesquita da cidade. Intitulada Man and State Power in Russia from the 19th to the 21th Centuries, inicia-se com uma mostra sobre os últimos czares que reinaram no país, entre 1801-1917, seguindo-se o “Domingo Sangrento” de 9 de Janeiro de 1905, quando uma manifestação pacífica de dezenas de milhares de pessoas que pretendiam entregar uma petição ao czar Nicolau II foi destroçada à bala pelas tropas imperiais, tendo sido atingidas mais de mil pessoas entre mortos e feridos. Episódio que marcaria o começo da Revolução de 1905. Outros quadros representam a tomada do poder pelos bolchevistas, o gabinete onde Lenine trabalhava, a cabana onde esteve escondido na Finlândia, no Verão de 1917, acusado de traição e de ter recebido dinheiro dos alemães para tirar a Rússia da guerra. A segunda parte, 1918-1999, vai da revolução até à época de Ieltsin, antes de Putin aceder ao poder. Exposição interactiva, com os mais modernos instrumentos do audiovisual, não esconde os episódios do Gulag e da fome na Ucrânia e na Rússia, com fotografias apropriadas e números respeitantes às purgas e assassinatos que, como é evidente, não correspondem às dezenas de milhões de mortos que são referidos na propaganda anticomunista ocidental. De destacar também a encenação de um lar soviético nos anos 1960, com uns electrodomésticos muito diferentes dos ocidentais, incluindo aspiradores, aparelhos de rádio e televisão. Assim como o episódio da repressão aos cantores de rock e de outras músicas em voga no ocidente, que se escondiam nos parques e florestas para fazerem os seus concertos, tal como acontecia em Portugal com Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira no tempo da ditadura fascista de Salazar.

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