As revoluções no centenário da de Outubro (II)

No ciclo do neoliberalismo pessimista actual as revoluções não passam de anomalias trágicas.

Revolução. Como em tudo na História, o uso público do conceito depende do programa ideológico predominante em cada revolução e da função histórica que se lhe atribui em relação ao momento em que dela falamos. No ciclo do neoliberalismo pessimista que tem sido dominante neste novo século, pleno de medos, ameaças, inimigos internos, tem-se-nos descrito as revoluções (e não apenas a de Outubro) como modelos de mudança histórica que não passam de anomalias trágicas. Neste centenário da Revolução Russa, novidades (e velharias) editoriais e discurso mediático encheram-se da ideia de que a violência é intrínseca às revoluções, de que o terror é nelas deliberado, que é inseparável do projeto revolucionário. Assim, o terror bolchevique na Guerra Civil (1918-21) é o que caracterizaria a Revolução Russa, o terror jacobino (1793-94) a Francesa. Os que nas últimas semanas se perguntaram como era possível sublinhar o quão emancipatório Outubro de 1917 foi (e pode ser ainda) para milhões de pessoas por todo o mundo sem lembrar o Gulag (1930-56), querem-nos convencer, antes de mais, de que a repressão estalinista já estava inscrita no ADN da Revolução. Além do abuso de leitura retroativa da história, seria interessante perceber se também acharão que a escravocracia estava inscrita no ADN da Revolução Americana ou se, pelo contrário, fazia parte de toda a realidade social que ela não conseguiu, ou não pensou, mudar. É possível fazer o elogio da democracia americana sem nos lembrarmos de Hiroshima, ou, entre muitos exemplos, dos 3,5 milhões de vietnamitas mortos na guerra americana?

O objetivo de quem lê assim as revoluções é o de reduzi-las à violência com que nelas se reaje à violência desencadeada por aqueles cujo domínio é perdido. Neste modelo de explicação histórica, a guerra civil e a violência não foram desencadeadas pelos exércitos russos brancos ou pelos seus valedores externos (alemães, austro-húngaros, depois britânicos, franceses, norte-americanos, polacos, japoneses...); elas teriam sido, sim, queridas, desde o início, desde antes da própria Revolução, pelos bolcheviques (como pelos jacobinos franceses, ou pelos republicanos espanhóis de 1936). Neste sentido se poderia dizer, por exemplo, que a guerra civil estaria inscrita no projeto liberal de 1820, sendo irrelevante que o miguelismo contrarrevolucionário incorporasse a violência como instrumento legítimo e necessário de correção de um erro histórico. São raciocínios destes que permitem dizer que o 11 de Março de 1975 teria sido inventado pelos comunistas para poderem justificar a "violência revolucionária" das nacionalizações ou da Reforma Agrária. Estas sim, pelo contrário, teriam justificado a violência contrarrevolucionária que varreu o Norte e Centro de Portugal e as ilhas, e que, ao contrário da outra, matou à bomba... Em síntese: mudar é que é violento; a dominação, a desigualdade e a exploração, essas, são simplesmente componentes da natureza humana.

Ao contrário do que sustenta esta historiografia das revoluções-catástrofe, as revoluções, enquanto processos de mudança, abrem na vida das sociedades fases de grande otimismo histórico partilhado pelos grupos sociais que as intuem — e depois delas se lembram — como oportunidades únicas e muito criativas de mudança democrática, plenas de participação e de entrega, cujo caráter excecional é descrito, de forma horrorizada, pelos contrarrevolucionários, como "fanatismo" patológico, como produto de manipulação, como "febre revolucionária" que as boas sociedades deveriam evitar. São os grupos sociais que perdem (ou temem perder) poder com as revoluções que descrevem a mudança (e dela se lembram) em narrativas carregadas de ansiedade e medo, que as descrevem sempre como vagas de terror, quer ele tenha, quer não tenha (caso português) sequer existido.

Como conceito operativo de leitura da história, a revolução, apesar de todas as tentativas de a transformar em excrescência histórica sem lugar no mapa das expetativas dos povos, continua a ocupar o papel que lhe corresponde na perceção dos processos sociais. De como o usamos depende, não só a (re)construção da nossa memória pessoal e coletiva, mas, sobretudo, a viabilidade da sua (re)emergência como fenómeno histórico.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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