“Quero fazer um cocktail em que a minha avó reconheça todos os ingredientes”

Constança Raposo Cordeiro veio de Londres cheia de ideias e prepara-se para abrir em 2018 um bar de cocktails. Vai chamar-lhe A Toca da Raposa e vai servir bebidas feitas a partir de ingredientes portugueses.

Fotogaleria
Constança Raposo Cordeiro Rui Gaudêncio
Fotogaleria
A cesta que usa quando vai apanhar frutas e ervas para os cocktails Rui Gaudêncio
Fotogaleria
Um livro, pela necessidade de continuar a aprender Rui Gaudêncio
Fotogaleria
As colheres de medidas fundamentais para o seu trabalho Rui Gaudêncio

“Vou pedir-vos que esqueçam a ideia de cocktail e que pensem só em sabores.” Sorriso aberto, gestos entre o entusiasmo e algum nervosismo, Constança Raposo Cordeiro tem 26 anos e a energia inquieta de quem sabe que tem muito para nos mostrar e está impaciente por fazê-lo.

Foi ela quem preparou as bebidas que vão ser servidas com os pratos criados por Bernardo Agrela, no Cave 23, em Lisboa, num dos vários jantares organizados durante a Lisbon Food Week. E tem razão: não podemos pensar nos cocktails a que estamos habituados. Aqui podemos ter, por exemplo, a acompanhar um aveludado de ostra, uma bebida feita à base de rainha cláudia fermentada e licor de musgo.

Ou, com a vieira que vem numa tapioca de caril com crumble de nougat, telha de mostarda de algas cabelo de velha — uma bebida que “foi a mais desafiante”, confessa Constança, porque nos põe “a pensar o que é um cocktail”: um caldo de cebola, galinha, lúcia lima, sálvia, louro e gin. Ou ainda, para a bola de Berlim com recheio de rabo de touro, “um cocktail que puxa à nostalgia” — e aqui a nostalgia tem a ver com “hamburgers e litrosas” — com licor de alperce, pêssego e tangerina verde, e “a litrosa”.

Em cada caso, as criações de Constança foram pensadas com uma enorme atenção aos sabores do prato. A ideia, explica, não é criar uma bebida que os reproduza em forma líquida, mas sim que os complemente, tornando o conjunto muito mais interessante do que a simples soma das partes.

E, no entanto, ainda há quatro anos Constança não sabia “nada” sobre cocktails. Percebeu isso quando, numa conversa com Dave Palethorpe, o proprietário do bar Cinco Lounge, em Lisboa, ele lhe pediu para enumerar três factos sobre gin. “Eu não sabia responder.” Mas sabia outra coisa: que o universo das bebidas a interessava. Tinha já passado pelo Tivoli em Vilamoura, pelo Ritz Carlton e estava no Penha Longa, em Sintra. “O Dave disse-me ‘Miúda, vai para Londres’”. E, passados alguns meses, Constança embarcava num avião para Londres, onde confirmou rapidamente que “não sabia nada”.

Bebidas inspiradas por animais

Mas aproveitou bem todas as oportunidades que lhe surgiram. Passou por bares diferentes, desde os mais tradicionais — “Tínhamos que saber 300 receitas de cocktails clássicos de cor” — até começar a perceber que o caminho que lhe interessava era outro. “Comecei a entrar em competições, a querer atingir certos sabores, mas sem um certo tipo de equipamento não era possível.” Acabou por encontrar o que procurava (e que ela própria ainda nem sabia o que era) no bar Peg and Patriot, de Matt Whiley.

“Destilavam, faziam licores, aquilo para mim era outro mundo.” Um dia disse a uma amiga que o seu sonho era trabalhar ali e amiga respondeu-lhe simplesmente “Make it happen”. Ela seguiu o conselho e não só conseguiu trabalho lá como se viu, em pouco tempo, a chefiar a equipa de bar. “Da primeira vez que lá fui, vi-os com uma caixa de plantas, de verduras, a comer as folhas. Disseram-me ‘Prova’, e eu cheirava e eles diziam, ‘Não, come’.”

A pouco e pouco, começou a pensar de outra forma, libertou-se da ideia da estrutura clássica de um cocktail e viu abrir-se um mundo novo. “Se conseguisse fazer uma coisa com complexidade, com princípio, meio e fim, só com fermentados, boa!” Outro desafio foi pensar no menu do bar a partir de um tema. “Começámos com o mapa de Londres e estudávamos as culturas presentes em cada zona. Mais tarde fizemos outro menu só inspirado em chefs.”

São formas de trabalhar que quer trazer para o bar que vai abrir em Lisboa em Março do próximo ano. Já o tem todo na cabeça — e, mais importante que isso, já tem o espaço físico. Vai ser perto do Largo do Carmo e vai chamar-se Toca da Raposa, porque ela se chama Constança Raposo Cordeiro e porque, em família, “tudo o que tinha a ver com raposa, cativava”. O menu vai ser inspirado “nos animais amigos da raposa, que são emblemáticos de Portugal, e que podem ser reais ou fictícios”.

Descreve, entusiasmada: “Vai ser um espaço só com música portuguesa, uma ligação muito grande com a natureza na sua forma mais orgânica, a pedra (a mesa será um grande cubo de mármore), o gelo em bloco, as flores, as plantas.” Aliás, esse trabalho, em torno das flores, plantas, frutas e outros ingredientes portugueses já começou e, para já, é só com eles que quer trabalhar.

Desafiou um casal de amigos que admira muito no universo dos cocktails, Maria Berg e Alex Kratena, aos quais se juntaram outros amigos, e está a organizar seis encontros em Arraiolos, onde vive. “Temos uma masterclass com uma produtora de plantas para fins medicinais, a Willemijn De Jongh, que vive há dez anos em Portugal e conhece tudo. Estamos quatro horas a apanhar ingredientes e depois vamos para a cozinha criar bebidas.”

A partir desse trabalho, que permite aos amigos estrangeiros conhecerem melhor Portugal, Constança ficará com uma série de receitas originais para servir na Toca da Raposa. Mas, garante, no seu bar as bebidas nem vão ser o mais importante. “O que eu gosto é de criar uma ligação entre pessoas que não se conheciam e, de repente, está um ambiente espectacular.” Desde os dias do Penha Longa que isso era o que lhe dava mais prazer.

Isso e que as pessoas percebam o que estão a beber. “Vou pedir à minha avó que leia a descrição do cocktail e pergunto-lhe ‘Consegue perceber a que é que isto sabe?’”. Se ela disser que sim, é porque está bem, é porque “é possível ter uma bebida clean, saborosa, complexa e com elementos que toda a gente conhece.”

Sugerir correcção
Comentar