Especulação toponímica

O leitor André Paiva partilha a explicação que arranjou para o nome do cabo Sardão.

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Intromissão rochosa do Alentejo litoral, o cabo Sardão contempla o Atlântico do alto dos seus penhascos, mas sem nunca se mostrar presunçoso. Indiferente aos tumultos da ondulação que lentamente lhe morde os calços, conserva uma postura sábia, de ruralidade à beira-mar: é sem dúvida um dos mais belos miradouros portugueses, e lugar de visita demorada.

Numa altura, enquanto olhava o campo de futebol de terra batida que se estende ao lado do edifício do farol, perguntaram-me (ou imaginei que alguém me fizesse a pergunta, talvez um dos miúdos que aí jogavam) por que motivo assim se chamava o cabo. Então sentei-me na cadeira ferrugenta que fazia de banco de suplentes e propus-me uma resposta.

“Numa tarde, no tempo em que havia paus a servir de balizas, duas crianças jogavam à bola. Suspensas num planalto, desafiavam-se em remates, e o tempo não fazia sentido. A certa altura, um pontapé mais forte fez a bola extravasar as alturas do olhar, e um gancho de vento catapultou-a para além do precipício: a espuma das ondas dissolveu-lhe o rasto, e as crianças — barriga espalmada no chão, cotovelos raspados, faces postas na boca da arriba — nada viam senão os calhaus que o mar amassava, num esmoer cartilagens.

No momento que antecedeu o chuto derradeiro (e desconhece-se que acaso etológico enviou o animal até àquele ponto do espaço), um sardão trepou para os hexágonos do esférico, e aí se coseu de medo até que se despenhou nas águas. Só havia uma embarcação no mar, nessa noite, muito para lá da costa convoluta, e um barco pescava nesse adormecimento líquido. As redes puxaram a faina para o casco: no emaranhado veio o réptil e a bola. O pescador agarrou-os, e ao ver o lagarto enfiar-se entre tábuas, olhou demoradamente para terra, enquanto no farol giravam as hélices da luz.

Em chegando a casa, mostrou à esposa o animal que aprisionara numa garrafa vazia, e um convencimento esclareceu-lhe as dúvidas, comovendo-o de importância: o cabo era Sardão, porque o bicho dali se atirava para a morte (a bola, essa, não interessava para o caso).”

A reconstrução deste topónimo em termos históricos, sobretudo à luz da realidade presente, lembrava-me, no entanto, um exercício de escola primária — quis assim averiguar o grau de verosimilhança da minha descrição, e dirigi-me de novo para a linha do mar.

Atento às vagas azuis, um idoso estava de pé; aceitou ler a minha história, e depois respondeu:

- Na verdade, havia um homem filho destas terras que era louco. Não de nascença — e ninguém nunca lhe quis senão bem — mas endoidecera depois de ter vindo da guerra. Todas as noites passeava-se por estes espinhaços, cantando canções sem sentido. Na guerra fora cabo, e o apelido era Sardão. Apareceu morto numa arriba certa manhã, e como homenagem o nome do cabo foi dado ao cabo.

Regressei para junto do carro, atravessando o campo de futebol: apesar de tudo, o lugar mantinha a sua beleza, pedia para ser revisitado, e agora, ao ter-lhe metido uma história, tornava-se ainda mais meu. As crianças estavam junto de um poste, mas de electricidade, tombado e sem cabos. Aproximando-me, perguntei-lhes se sabiam por que é que ao cabo chamavam Sardão? E uma disse, esticando o braço:

– Porque sardão é o nome de um arbusto e dantes, se calhar, havia muitos nas redondezas.

E a outra acrescentou, mas nada tendo que ver com o caso:

– Com o cabo da vassoura que o meu pai tem na mala da carrinha tiramos a bola debaixo do carro.

André Paiva

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