A partir de que ponto a crueldade não permite rir?

A Companhia Maior convidou o encenador Pedro Penim, do Teatro Praga, a dirigir uma criação para este grupo de actores com mais de 60 anos. Humor Maligno, no CCB até terça, é um policial em que a culpa está no riso.

Foto
Humor Maligno, por vezes de forma violenta, é uma peça cheia destes momentos em que os limites são colocados à prova Companhia Maior | Bruno Simão

Em Março deste ano, o comediante inglês Ricky Gervais saltou para as páginas dos jornais depois de um casal ter abandonado um dos seus espectáculos dando voz ao choque e à ofensa resultantes de uma piada que envolvia um bebé morto. Quando à velocidade das redes sociais o episódio se espalhou pelo mundo, Gervais usou o mesmo instrumento de poder de Donald Trump e tweetou, em sua defesa, que o espectáculo incluía ainda gags sobre sida, cancro, fome, violação e overdose. E negou qualquer arrependimento, fazendo acompanhar as suas palavras de uma fotografia em que escancarava o sorriso, erguendo um copo de vinho na mão enquanto gozava um dia de sol.

Pedro Zegre Penim, membro do Teatro Praga este ano desafiado a criar e dirigir um espectáculo para a Companhia Maior, cita este caso como exemplo da discussão sobre os limites para o humor. E liga o episódio a uma das suas leituras primordiais para a escrita de Humor Maligno, espectáculo que estará em cena de sábado a terça-feira no Centro Cultural de Belém, em concreto o livro (L’Anthologie de l’Humour Noir) em que André Breton, em 1940, cunhava a expressão “humor negro”. “O Breton diz que, na verdade, o que lhe interessava e devia interessar ao humor negro não era propriamente o conteúdo – e falava da ideia do bebé morto – mas o movimento que representa alguém contar essa piada e alguém a ouvir.”

Humor Maligno, por vezes de forma violenta, é uma peça cheia destes momentos em que os limites são colocados à prova. De certa forma, diz o autor – em parceria com Hugo van der Ding, conhecido pela tira de BD A Criada Malcriada e pela página de Facebook Cavaca Presidenta – e encenador, decorre sempre numa mesma dinâmica em que se pisa o risco para testar o limite do colectivo contando uma piada sobre determinado assunto, o que acaba por espoletar resistência e censura por parte de alguns e instalar-se a discussão sobre o que é aceitável e até onde é razoável ir em cada dado assunto.

Foto
Pedro Penim polvilhou o tema dos limites e dos tabus do humor com um toque de Agatha Christie Companhia Maior | Fotografia de Bruno Simão

 “Todos temos os nossos limites”, admite Penim. “Cada um dos actores foi-se manifestando em relação a esses limites e a sua exploração foi-nos empurrando para identificarmos os temas, porque eles são mais ou menos comuns aos temas na sociedade que são passíveis de ofender ou desencadear uma reacção de censura. Para fazerem essas cenas, em muitos casos, eles tiveram de fazer uma suspensão das suas próprias crenças – e isso é de uma enorme generosidade. Também coloco coisas no texto que me magoam, mas sei que preciso de pisar esse risco e que não me posso proteger, tal como sei que estou a pôr coisas que os magoam a eles ou que magoam pessoas do público porque já tiveram alguma história relacionada com um dos temas com que se brinca.”

Um toque de Agatha Christie

A generosidade que Pedro Penim enaltece resulta também de uma construção conjunta. No seu primeiro encontro com a Companhia Maior, cujas regras estabelecem um limite mínimo de 60 anos para alguém integrar esta estrutura amadora, o encenador quis sobretudo conhecer os elementos e sondar aquilo que lhes interessava ou não fazer. Desde que fui fundada em 2010 por Luísa Taveira, a Companhia Maior convida todos os anos um criador nacional para a dirigir e criar um espectáculo à sua medida – foi assim com Tiago Rodrigues, Mónica Calle, Filipa Francisco ou Jorge Andrade (que dirigiu um texto de Tim Etchells) – e o primeiro objectivo do fundador do Teatro Praga foi evitar redundâncias em relação ao que já haviam feito anteriormente.

Daí surgiu, quase de imediato, a recusa de uma “insistência, com qualidades diferentes – às vezes a funcionar muito bem, outras nem tanto”, descreve Penim, “de uma ideia de que estes actores transportam consigo uma espécie de material simbólico, uma memória, uma doçura simbólica da passagem do tempo”. Sem querer assumir-se um salvador dessa projecção temática naturalmente motivada pelas datas constantes dos bilhetes de identidade, quis colocar-se no lugar deles e pensar o que gostaria de receber de alguém chegado de fora. Quando, em conjunto, perceberam que coincidiam também na vontade de trabalhar o humor em palco, Penim atirou-se então às leituras sobre humor negro, pensando “como se adequaria a estes corpos, a estas vozes, as estas presenças”.

Só que depois desse primeiro contacto, Penim e van der Ding trabalharam o texto e enviaram-no aos actores antes do início da fase de ensaios, sem os preparar para o que iam receber. “A primeira reacção foi muito má”, admite o encenador. “Cheguei aqui a um primeiro dia pesadíssimo, em que todos estavam com um ar muito consternado em relação à peça, porque não esperavam que fosse uma coisa muitas vezes agressiva.” As conversas que se seguiram foram suavizando essa reacção inicial e tudo foi encaixando e aproximando vontades e expectativas.

Em resposta aos desejos manifestados pela Companhia Maior de poder trabalhar com um texto de estrutura mais clássica e de narrativa linear, algo que até agora tinha escasseado no seu percurso, Pedro Penim polvilhou o tema dos limites e dos tabus do humor com um toque de Agatha Christie. A leitura da peça A Ratoeira, da escritora policial inglesa, acabou mesmo por servir de referência para o desenvolvimento do espectáculo. Só que aqui o crime não é tanto passional ou motivado por golpes financeiros. O crime e a culpa aparecem associados ao rir dos outros e a uma manifestação que, no limite, poderia estar impregnada de interpretações ligadas a situações de poder ou de privilégio, e afecta a expressões de humilhação e crueldade.

E a culpa emerge, por um lado, do clima em que vivemos “numa época de policiamento das opiniões dos outros e em que, assim que alguém pisa o risco, toda a gente está muito pronta para apontar o dedo, julgando se quem pisa esse risco tem propriedade para o fazer, se o faz em causa própria ou não, se perpetua uma ideia de humor com questões em que se continua a subjugar o outro”; por outro lado, deixa-se que a culpa se instale em cada espectador para que dê por si a perguntar-se como foi capaz de rir de algumas das coisas mais violentas que são proferidas em palco. Tudo isto numa ficção a que Penim chama “uma comédia, quase uma pecinha de teatro”. Só que não é. O riso, aqui, é só o princípio.

Sugerir correcção
Comentar