O caso Lysenko como um paradigma de anticiência

O físico Carlos Fiolhais e o bioquímico David Marçal têm um novo livro de divulgação científica, A Ciência e os Seus Inimigos, que chega às livrarias no início da próxima semana. Este é um excerto do capítulo sobre os ditadores como uns desses inimigos.

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Trofim Lysenko a analisar o crescimento do trigo no campo de uma cooperativa agrícola colectiva perto de Odessa, na Ucrânia, nos anos 30 Sovfoto/UIG via Getty Images

As ciências biológicas sofreram na União Soviética, a partir de finais da década de 1920, um enorme desvio pseudocientífico, ao qual está associado o nome do agrónomo Trofim Lysenko. O “caso Lysenko” é de referência obrigatória sempre que o tema é pseudociência. Tratou-se de um exemplo paradigmático de manipulação política e ideológica, uma vez que a teoria defendida por ele negava a biologia da hereditariedade, assente nas leis do monge agostiniano checo Gregor Mendel (1822-1884) e desenvolvida já no século XX com a descoberta das suas bases genéticas e com a ligação à teoria da evolução de Darwin. De acordo com Darwin, as características de cada espécie transmitem-se às gerações seguintes, havendo apenas diferenças intergeracionais provocadas por pequenas mutações. A acumulação ao longo de muito tempo de mutações conduz ao aparecimento de novas espécies. Algumas espécies, devido à sua boa adaptação ao ambiente, sobrevivem, ao passo que outras não o conseguem fazer. A extinção de espécies corresponde à interrupção de ramos da “árvore da vida”, formados a partir de um tronco comum. Mas ao lado há ramos que vingam.

A genética foi-se impondo no mundo científico na segunda metade do século XIX e principalmente no século XX. Encontrou defensores nas academias soviéticas, o mais importante dos quais foi o biólogo russo Nikolai Vavilov (1887-1943), que dirigiu o Instituto de Botânica Aplicada e Novos Cultivos, de São Petersburgo. Entre os anos de 1920 e 1960, porém, esses trabalhos de investigação genética que, tal como noutras partes do mundo, procuravam conciliar o mendelismo com a ideia dos genes foram proibidos. Havia uma suspeição do darwinismo por ser considerada ciência burguesa e capitalista.

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A Ciência e os Seus Inimigos
Carlos Fiolhais e David Marçal
Editora Gradiva
288 páginas, 13 euros

De facto, havia razões ideológicas para essa deriva anticientífica. A ideologia marxista-leninista baseava-se no anúncio da chegada de um “homem novo”, uma ideia com algumas semelhanças à do “homem novo” de Hitler. Ora, um tal tipo de pensamento tem um carácter lamarckiano, do nome do famoso biólogo francês Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829), que propôs uma teoria da evolução, que hoje sabemos estar errada, segunda a qual a adaptação ao ambiente seria bastante rápida: por exemplo, as girafas tinham pescoços grandes porque se esticavam para comer as folhas mais tenras no cimo das árvores mais altas e os seus filhos nasciam com os pescoços grandes. No início do século XX, os genes, na altura ainda não associados a componentes biológicos concretos, eram algo pouco empírico, pelo que a visão da evolução baseada na genética era considerada idealista, opondo-se a uma visão dita materialista. No seu livro Materialismo e Empirocriticismo, publicado em 1909, Lenine defendia uma ideia estritamente materialista do mundo: os nossos pensamentos não passavam de simples cópias do mundo. Essa visão filosófica tornou-se a base da ciência soviética. De facto, havia aqui uma grande confusão: a teoria de Lamarck é que era idealista e a de Darwin-Mendel materialista.

Uma nulidade como cientista

No final da década de 1920, Lysenko defendeu que a solução para as dificuldades na produção de trigo na URSS, que se deviam a condições climatéricas desfavoráveis, estava na chamada “vernalização”, um método que consiste na conservação das sementes de cereais em frio antes de as semear, para que depois germinem mais facilmente. Além da vernalização, Lysenko também preconizava a enxertia, que consiste na implantação de um ramo de uma planta de uma espécie sobre uma outra planta pertencente a uma espécie diferente. Com base num pensamento lamarckiano, Lysenko pensava que esses dois métodos conduziriam rapidamente a espécies mais resistentes a condições climáticas adversas. Haveria, segundo ele, transmissão hereditária de caracteres adquiridos. No início dos anos de 1930, Lysenko apresentou uma teoria alternativa à teoria cromossómica (os genes estão nos cromossomas, estruturas do núcleo celular conhecidas desde o final do século XIX), que foi buscar aos trabalhos do arboricultor russo Ivan Michurin (18555-1935).

Essa sua teoria foi apoiada pela nomenklatura soviética, incluindo acima de todos o “Grande Líder”, que a elevou ao estatuto de teoria oficial e única. Só havia um “pequeno” problema: a teoria é falsa, pelo que as plantações nela baseadas não vingavam, circunstância que levou à morte pela fome de faixas enormes da população.

A ideologia cega. Apesar do seu sucesso experimental (e do insucesso da teoria michurinista adoptada por Lysenko), a teoria cromossómica da hereditariedade foi considerada reaccionária e capitalista. Os geneticistas que se recusaram a aceitar os novos postulados oficiais sobre o funcionamento da hereditariedade foram afastados dos seus cargos, perseguidos e aprisionados, em processos sumários que nalguns casos faziam parte de purgas mais gerais. Viveu-se uma verdadeira época de terror. Em pouco tempo, um grupo de investigadores que tinha colocado a Rússia na vanguarda das investigações genéticas mundiais ficou aniquilado. Vavilov foi um caso exemplar de banimento ideológico: devido a perseguição pessoal de Lysenko, então Presidente da Academia Lenine das Ciências Agrícolas, foi condenado à morte em 1940, sentença depois comutada em prisão perpétua. Foi deportado para um campo de trabalho na Sibéria onde morreu pouco depois, em condições desumanas. Outros geneticistas conheceram a mesma sorte: ou, tal como Galileu, abjuravam da ciência alegadamente burguesa ou estavam liquidados, por muito respeitável que fosse o seu historial no Partido.

Em 1947 Lysenko escrevia a Estaline dizendo que o neodarwinismo “é uma ciência metafísica burguesa dos corpos vivos, da natureza viva, desenvolvida nos países capitalistas ocidentais não para fins agrícolas, mas para a eugenia reaccionária, o racismo e outros propósitos”. Estaline respondeu-lhe: “Penso que o princípio de Michurin é o único princípio científico. O futuro pertence a Michurin.”  O ano de 1948 assinala o apogeu de Lysenko. Num discurso intitulado “Biologia Soviética” proferido perante a Academia Lenine de Ciências Agrícolas, em Moscovo, e no qual fez a apologia das suas ideias pseudocientíficas, Lysenko mencionou no final que o Comité Central do Partido Comunista as tinha examinado e expressamente aprovado. Para o biólogo Stephen Jay Gould (1941-2002), esta “constitui a passagem mais arrepiante de toda a literatura científica do século XX”. Relatou o jornal Pravda, órgão do regime: “O anúncio do Presidente levou ao entusiasmo geral dos membros da sessão. De um só impulso todos os presentes se ergueram dos seus lugares e prestaram uma firme e prolongada ovação em honra do Comité Central do Partido Comunista e de Estaline, em honra do sábio líder e mestre do povo soviético, o grande cientista da sua época, o camarada Estaline...”

A partir daí o michurinismo passou a ser linha oficial do Partido: negá-lo ou sequer duvidar dele seria grave dissidência. A Academia escreveu pouco depois uma carta a Estaline reafirmando a boa doutrina, num tom que era o mesmo do discurso de Lysenko: “Continuando o trabalho de V. I. Lenine, o Camarada Estaline incorporou na biologia materialista progressista os ensinamentos do grande reformador da Natureza, I. V. Michurin, e, na presença de todo o mundo científico, guindou a posição michurinista da ciência a única posição correcta e progressista em todos os ramos da ciência biológica... Longa vida à ciência biológica michurinista virada ao futuro! Glória ao grande Estaline, Líder do Povo e corifeu da ciência progressista!”

Lysenko, que ocupava na Academia Lenine o lugar de presidente que fora de Vavilov, recebeu duas vezes o prémio Estaline, a que se juntou a ordem de Lenine e a de “Herói da União Soviética”. Chegou a ser vice-presidente do Soviete Supremo. No entanto, como cientista era uma absoluta nulidade e nem sequer entendia o que era o método científico. A teoria que defendia nada tinha de científico. Os estragos internos do caso Lysenko foram incomensuráveis. Só em meados da década de 1960 é que a URSS abandonou definitivamente a doutrina de Lysenko e voltou à genética convencional.

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