“Na resposta ao escândalo perdeu-se a magia da Casa Pia”

“Nós, crianças retiradas às famílias, precisamos de uma atenção mais personalizada e diferenciada. O acolhimento fora do colégio levou muitos jovens a perderem-se.” Ricardo Saldanha cresceu na Casa Pia, onde mais tarde foi monitor de outras crianças e jovens como ele. Testemunho na primeira pessoa.

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Ricardo Saldanha, 34 anos, foi aluno interno e monitor na Casa Pia Ricardo Lopes

Depois do escândalo de pedofilia na Casa Pia, tinha de haver alguns ajustes, mas porquê mudar as coisas boas? Até o símbolo e o hino mudaram. Foi como apagar o património. Era uma casa com uma identidade. Nessas mudanças, as residências dentro de muros passaram para o exterior. O acolhimento fora do colégio levou muitos jovens a perderem-se. Também com isso fiquei triste.

Nós conhecíamos a magia e a energia de ter os colégios dentro da própria escola. Por várias razões. Pelo acompanhamento que era feito: sempre que havia problemas dentro da escola, o educador de referência tinha mais facilidade em falar com os professores. Os professores conheciam os educadores e estavam em contacto sempre que tal se justificava. Por exemplo, quando um aluno faltava a uma aula.

Naquela estrutura dos colégios internos ou de lares intramuros, havia aquele conceito de família. Estando dentro do colégio, tínhamos um laço de família diferente e era o que se pretendia. Ter o lar fora do colégio só levou os jovens a perderem-se.

União entre internos

Percebo que tenha havido tentativas de integrar os jovens no mundo exterior, na comunidade, no sentido de os levar a terem uma maior autonomia. Não penso que tenha sido para combater o estigma de ser aluno interno. Não posso falar de estigma. Pelo contrário. Os alunos externos tinham inveja de nós, alunos internos, por causa da união que existia entre nós.

Nós, crianças e jovens acolhidos, não somos como a maioria dos jovens. Temos uma condição diferente. O que nós precisamos no momento é de acolhimento, de apoio. Falo dos alunos internos. Precisamos de uma atenção mais personalizada e diferenciada.

É uma condição diferente. É ter essa atenção mais imediata de os educadores poderem comunicar com os professores e os outros cuidadores (médicos, etc...) das crianças. E não dar tanto espaço. Tudo o que viesse imediatamente, tudo o que fosse informação imediata, era uma mais-valia. A informação espaçada vai-se perdendo. Na resposta ao escândalo, perdeu-se a magia do Colégio Casa Pia.

Quando se foi estudar para fora e o acolhimento passou a ser extramuros [com lares em vivendas distribuídas por vários concelhos da região de Lisboa ou na própria cidade], começou a haver muitas faltas. Eu era assistente de apoio residencial, e nós só sabíamos no fim do mês que a criança andava a faltar às aulas. Essa informação só era transmitida nas reuniões de escola, nas quais participavam os educadores.

As mudanças continuaram. Antes, havia três educadores e dois assistentes de apoio residencial. E estes dois, nos quais eu estava incluído, faziam as noites. Entre os três educadores, havia um que era o principal, de referência. Os educadores faziam os dias e podiam garantir um acompanhamento mais próximo dos educandos. Os educandos estavam com ele três ou quatro vezes por semana, ou quase todos os dias. Isso era muito importante.

Depois passou a haver cinco ou mais educadores em cada lar. Mas como todos os educadores fazem noites, e rodam entre si por turnos, aquela pessoa que o aluno tinha como o seu educador de referência passou a estar menos presente e ele só a via uma vez por semana. Aquilo de que ele precisava — um contacto mais pessoal — perdia-se pelo caminho.

Eu entrei na Casa Pia com três anos, fiquei como interno até aos 17, e depois como aluno não residente até aos 19 anos. Trabalhei como monitor durante cinco anos. Fazia horário nocturno, de assistente de apoio residencial. Como monitor, trabalhava em regime de voluntariado. Era como se fosse interno, tinha apoio na escola, na faculdade e um contrato de trabalho na Casa Pia. Já lá vão dez anos.

Tenho 34 anos e fui várias vezes convidado a fazer uma apresentação na Sessão Solene do Aniversário da Casa Pia, a 3 de Julho. Para contar o meu percurso, o sucesso no meu trabalho. Falava sobre a minha experiência, sobre as oportunidades dadas pela Casa Pia. Na última vez que o fiz, há dois anos, estavam só educadores presentes, e eu questionei qual era o sentido de estar a falar sobre a minha experiência para os educadores. Até isso se perdeu.

Agarrar oportunidades

Interessava-me falar para os jovens da mesma forma que outros educandos mais velhos falaram para mim quando eu era uma criança. Eu segui muitas dessas referências. As oportunidades somos nós mesmos que temos de as agarrar. Era esta a minha mensagem. Então nessa última vez, eu falei mas não sei se fui entendido.

Quando houve aquelas reestruturações, na década de 2000, vi as coisas a acontecer e a perderem sentido. Eu pensei mesmo: “Não vai dar certo.” Com estas mudanças, muitos nem chegaram a acabar a escola. Começou a haver muitas faltas. O sucesso escolar não era muito elevado, mas na minha geração nunca chumbávamos, embora poucos tenham ido para a universidade. Eu terminei Arquitectura em Lisboa.

Se funcionava bem, quando houve o escândalo? Não sei explicar. Eu cresci lá dentro e não tinha noção nenhuma que aquilo pudesse estar a acontecer, nunca vi nada, nunca percebi. Para mim, foi uma surpresa.

Para a maioria de nós, aquilo foi uma surpresa. A verdade é que acontecia em todas as escolas. Aconteceu em vários lugares. Foi um escândalo de pedofilia e não um escândalo da Casa Pia. Foi triste terem dado ao escândalo de pedofilia o nome da Casa Pia. Não é um problema da Casa Pia, é um problema do Estado.

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