Faz sentido os juízes pagarem pelo disparates de um colega?

Classe sente-se atingida pela crítica que desencadeou decisão de magistrado do Tribunal da Relação do Porto sobre “mulheres adúlteras”.

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Henriques Gaspar deixou um aviso: a propalada independência dos juízes não lhes dá o direito de ignorarem a lei

“Faz sentido acusar todos os juízes de preconceito pelos disparates de um juiz?” A pergunta foi disparada por alguém numa assistência composta quase só por magistrados, já o primeiro dia de trabalhos do Encontro Anual do Conselho Superior da Magistratura, em Tavira, estava quase a terminar. Antes disso, tinham sido várias horas de debate. E o fantasma da sentença do juiz do Tribunal da Relação do Porto, que desculpabilizou a violência doméstica contra “mulheres adúlteras”, Neto de Moura, esteve quase sempre presente nas diversas intervenções dos participantes – mas sem que ninguém se atrevesse a evocar abertamente o caso.

Apenas o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Henriques Gaspar, tinha informado os jornalistas, à margem do encontro desta sexta-feira, que estava pronto o inquérito disciplinar desencadeado pelo Conselho Superior da Magistratura, na sequência da reprovação generalizada da sentença do Tribunal da Relação do Porto. Não revelou, porém, se o inspector encarregue de analisar o caso propõe alguma sanção a Neto de Moura – muito embora seja expectável que o inquérito evolua para processo disciplinar.

"Pode haver um direito à indignação. Mas introduziu-se aqui demasiada emoção, uma emoção que ultrapassou aquilo que seriam as minhas expectativas, mesmo as mais longínquas ou mais pessimistas", referiu Henriques Gaspar.

Havia de ser preciso passarem várias horas para alguém voltar a chamar os bois pelos nomes sem ser nas conversas de corredor do encontro. E, desta vez, não foi um juiz que o fez. Foi um orador convidado, o advogado Francisco Teixeira da Mota, que resolveu ler aos magistrados, preto no branco, as passagens mais impressionantes do célebre acórdão. Aquelas que todos conhecem, mas que ninguém até ali tinha ousado mencionar no encontro, em que Neto de Moura considera compreensível que um homem enganado pela mulher a agrida. E nas quais afirma que até há não muito tempo a lei penal “punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que achando a sua mulher em adultério a matasse”.

“Como não foi há muito tempo?”, questionou Teixeira da Mota, numa referência ao facto de a lei em causa ser do final do séc. XIX. “Os juízes têm de ter noção da bofetada que estão a dar às pessoas quando escrevem isto”, acrescentou.

Quase ao mesmo tempo, surgia a pergunta na plataforma electrónica que servia de apoio aos participantes no encontro, e através da qual podiam interpelar os oradores: “Faz sentido acusar todos os juízes de preconceito pelos disparates de um juiz só?”

Era a expressão de toda uma classe que se sente injustiçada por estar a ser responsabilizada pelos actos de um dos seus.

A interrogação ficou sem resposta. Mas falou-se, e muito, de temas que incidem directamente no que sucedeu, como os mecanismos de controle das decisões menos acertadas dos magistrados. Existem, mas nem sempre funcionam: a juíza que co-assina a sentença de Neto de Moura admite não ter lido todo o texto antes de o subscrever.

Antes de aludir directamente ao tema quando foi abordado pelos jornalistas, Henriques Gaspar tinha deixado um aviso: a propalada independência dos juízes não lhes dá o direito de ignorarem a lei. “Se a sociedade aceita a importância da lei para regular os comportamentos dos indivíduos, a independência dos juízes não pode significar a desconsideração da lei nem a interpretação ou aplicação por acto de vontade”, sublinhou.

Afinal, é verdade que a independência dos juízes significa liberdade de decisão. "Mas de acordo com a lei e os princípios normativos fundamentais”, insistiu o presidente do Supremo.

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