A guerra é a maior queda do homem

O que pode a ficção num mundo sem Deus? Pergunta de partida, tendo como centro um homem na sua normalidade, de Em Um Deus Em Ruínas. Kate Atkinson volta à guerra e à sua herança para reflectir sobre a arte, a beleza, a verdade e o papel da literatura.

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Kate Atkinson escreve no século XXI, quando a Europa questiona a sua identidade e a Grã-Bretanha dá o passo para sair da Europa pensada para que uma guerra como a de 39-45 não se repetisse Marco Secchi/Getty Images

“É muito difícil escrever sobre a normalidade”, diz Kate Atkinson depois de andar às voltas sobre como lidar com uma personagem que, tendo sobrevivido a uma guerra, era suposto ter seguido uma vida normal. Teddy, o adorável rapazinho de Vida Depois da Vida (Relógio d’Água, 2014), irmão mais novo de Ursula Todd, a protagonista, aparece no novo romance que de certa forma dá continuidade a esse anterior drama familiar em cenário de guerra onde Atkinson partiu de uma hipótese: e se fosse dada à protagonista a hipótese de viver diferentes vidas no mesmo espaço de tempo, dentro da mesma família? A Vida Depois da Vida é isso. Agora, em Um Deus Em Ruínas, o romance mais recente da britânica, Teddy regressa como personagem central. Ele é um homem que sobreviveu à experiência de pilotar um bombardeiro durante a II Guerra Mundial, assistiu à dissolução da família, ao desabar da ordem mundial como a conhecia. Casou, teve uma filha e será essa rapariga o motor dos problemas e da razão de ser da vida de Teddy, um homem aparentemente tranquilo que o leitor vai conhecer a partir do modo como o olham as outras personagens.

“Sempre planeei escrever dois romances de guerra porque achava que a guerra, no seu conjunto, era demais para que um só livro a abrangesse de maneira sensata e queria concentrar-me nos dois aspectos que mais me interessavam: o Blitz e os bombardeamento contra a Alemanha, que era nossa própria forma do Blitz. Eram os dois lados da mesma moeda, por assim dizer. Portanto, sabia desde o início que haveria dois livros e que o segundo se concentraria em Teddy”, conta Kate Atkinson ao Ípsilon a propósito de um livro que é também uma reflexão sobre Arte, Verdade, Beleza, coisas “com letra maiúscula” como as imaginava Teddy sempre que as ouvia da boca da mãe, Sylvie, alguém com ambições artísticas. Mas é também um romance sobre a construção literária que Atkinson desenvolve a partir de Viola, a filha desafiante de Teddy, instável e moralmente questionável.

 Atkinson ironiza a partir dela. É um espelho com que se diverte, invertendo papéis, interrogando o próprio trabalho de escrita e o que se espera de um escritor. Por exemplo, quando a põe, a Viola, como convidada de mesas redondas com temas como “o papel do escritor no mundo contemporâneo”, ou “popular versus literário”. Na nota de autora que junta ao livro, diz mesmo, sem esconder a irritação que lhe provoca a pergunta sobre o que é o romance, que este é “sobre a ficção literária (e a necessidade de imaginar aquilo que não podemos conhecer) e sobre a Queda (do Homem)”. Há referências aos clássicos que trataram o assunto. Não há queda maior, acrescentará, do que a guerra.

É a partir dessa perspectiva que surge Teddy, o mais novo dos Todd da sua geração. O leitor tem acesso a Teddy a partir das várias pessoas que se cruzam na sua vida ao longo dos anos. E para traçar esse mapa pessoal da sua personagem, Atkinson desobedece à cronologia criando pontas soltas de suspense que vai atando, enquanto mantém desperta a atenção do leitor com uma eficácia notável. “Em Vida Depois da Vida, Teddy era uma criança na maior parte das vezes em que apareceu e uma personagem muito atraente. Interessei-me em ver o que acontecia com Teddy enquanto crescia. Isso foi mais difícil do que eu imaginara”, conta. “Ele estava hospedado na minha cabeça como criança”, continua, voltando ao início de conversa: a vontade de que ele vivesse uma vida "comum" depois da guerra, a tal premissa difícil de cumprir na literatura. “Apesar de ter pensado pensei que a estrutura de Um Deus Em Ruínas fosse muito direta descobri que a maneira mais fácil de escrever sobre Teddy durante a maior parte do tempo era escrever sobre ele do ponto de vista de outras personagens e criar uma imagem composta”, revela, esclarecendo que o facto de os capítulos não serem cronológicos confere como que uma ressonância ao passado e ao futuro de Teddy.

O tempo, o ou sentido de tempo, melhor dizendo, ecoa e segue um quase fio condutor. Nada mais do que a frase de Emerson que dá título ao romance, pensamento que a escritora escolheu para epígrafe: “O homem é um deus em ruinas. Quando os homens forem inocentes, a vida será mais longa e passará à eternidade tão levemente como despertamos de um sonho.” Ela foge à questão, remete-a para os clássicos que trataram o tema da guerra, Sobretudo um: Guerra e Paz, de Tolstói. Refere-a, aliás, no epílogo. O que se pode dizer ou escrever acerca do tema depois dessa obra maior? E volta-se à questão da perspectiva, do tempo. “A guerra, qualquer guerra, está tão cheia de incidentes e emoções, tanto o horror como a bondade e tudo o que existe entre eles, que fornece uma enorme tela para que um escritor trabalhe, seja com traços amplos ou em detalhes mais de perto. Pessoas – personagens – são removidas de suas vidas normais, por isso é interessante explorar o que acontece com elas, as pessoas, sob esse tipo de pressão intensa.”

A maldição humana e divina

Eis o desafio. Cada uma das personagens que fazem a teia de Um Deus em Ruínas sobrevive ao seu tempo e fala para um presente a que a escritora não quer nem tenta esquivar-se. Quando escreve a expressão “Europa arruinada”, referindo-se a um pós-guerra, essa expressão escapa ao tempo a que se refere e fixa-se num presente incómodo, o da escrita. Atkinson é alguém que esta a escrever no seculo XXI, quando a Europa se questiona sobre a sua própria identidade e a Grã-Bretanha dá o passo para sair dessa Europa pensada para que uma guerra como a de 39-45 não se repita com o horror que criou. “Neste momento, a Europa é um assunto muito emocional para nós na Grã-Bretanha (particularmente na Escócia). Eu acho difícil acreditar que ajudámos a lutar numa guerra para salvar a Europa e agora queremos deixá-la. Penso que, se dermos um passo atrás, se recuarmos nesse modo de ver a Europa podemos perceber que está longe de ser um projecto arruinado. Muitas, muitas pessoas na Grã-Bretanha encontram-se desprovidas da ideia de imaginar o que é não fazer parte dela.”

Atkinson atreve-se a estimular esse exercício imaginário. O que somos? O que pode a arte, a ideia de consciência, que papel tem o inconsciente num rumo colectivo. Emerson volta. O homem na sua ruína. Ou o o homem depois de Deus. Há uma personagem que interpela. “Há uma centelha de divindade no mundo, não Deus, Deus para nós acabou, mas há qualquer coisa. Será o amor? Não o amor parvo e romântico, mas qualquer coisa de mais profundo?”

É o eterno dilema da falta de linguagem sempre que se toca em temas como o da guerra. A importância de falar e a imediata sensação de que não há meio de nomear. Atkinson não foge ao que parece inevitável nesta matéria. Sublinha-o, nem que seja para banalizar a falha – ou a falta – das palavras. É Teddy quem tem aqui a palavra citando a Bíblia. “E tudo o que Adão chamou a toda a alma vivente, isso foi o seu nome”, acrescentado de imediato: “Ter o domínio sobre todas as coisas é uma maldição horrível”. Só possível aos deuses, nunca aos homens, apesar da tentação. O que será do homem quando Deus ruir? Ou o que é quando já parece ter ruído? A pergunta atravessa o livro, um dos mais tocantes desta escritora de 65 anos, que já venceu o Whitebread em 1995 e foi finalista do Costa Award, que classificou a pesquisa para este romance como “interminável, entediante, gratificante e fascinante”. Cruza história, arte, música, refecte sobre o presente britânico, mas também europeu, ri do mundo literário e atreve-se ao confronto: o do seu país com uma herança que tem 70 anos, mas permanece viva. “Não acho que nos vamos livrar dessa guerra. Tem um enorme poder sobre a psique britânica. Muitas pessoas ainda a consideram a "nossa melhor hora". Não sei se é inteiramente verdade, mas acho que os britânicos sempre tiveram tendência para olhar para uma época de ouro passada em vez de abraçar o futuro (ou mesmo o presente).”

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