Entre o murmúrio e a exuberância

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Renaud Capuçon Simon Fowler

O último concerto da Orquestra Gulbenkian concentrava vários pontos de interesse, tendo atraído um numeroso público que encheu por completo o Grande Auditório. A direcção musical coube ao alemão Matthias Pintscher, compositor com créditos firmados e cargos de peso como o de maestro principal do Ensemble Intercontemporain (fundado por Pierre Boulez) e da Orquestra da Academia do Festival de Lucerna, e o solista convidado foi Renaud Capuçon, violinista com uma notável carreira internacional. O programa continha duas obras tão fascinantes como apelativas, representativas das novas tendências que marcaram a linguagem musical na viragem para o século XX — os Nocturnos para orquestra de Claude Debussy e O Pássaro de Fogo, de Stravinsky —  e uma peça do próprio Matthias Pintscher, mais concretamente Mar’eh, para violino e orquestra. Nos últimos anos, a música contemporânea tem ocupado um lugar marginal na programação da temporada Gulbenkian, pelo que é de assinalar quando esta reaparece, representada por obras de qualidade.

Inspirados nas paisagens nocturnas do pintor americano James McNeill Whistler, os Nocturnos de Debussy são habitualmente apontados como exemplos de Impressionismo na música — ainda que a teia de influências do compositor francês seja bem mais complexa — e exigem dos intérpretes grande subtileza ao nível do colorido tímbrico e das nuances dinâmicas, fluidez rítmica e texturas pairantes na  primeira e na terceira peça (Nuages e Sirènes) e ritmos incisivos, por vezes dançantes ou em fanfarras na peça central (Fêtes). Algumas passagens costumam soar mais etéreas noutras interpretações (incluindo o coro feminino das Sereias), mas o resultado geral foi suficientemente refinado e notou-se que Matthias Pintscher fez um trabalho sólido e cuidado com o agrupamento instrumental.

A subtileza dinâmica e textural, acrescida por uma paisagem sonora enriquecida por uma ampla secção de percussão, foi ainda mais evidente no concerto para violino e orquestra de Matthias Pintscher, intitulado Mar’eh, palavra hebraica que pode significar “rosto”, “aura” ou “uma visão bela surgida subitamente”. O compositor joga com estes significados no âmbito de um discurso que se afasta do tradicional modelo do concerto para solista e orquestra (no sentido em que se espera uma exibição extrovertida do solista), optando antes por explorar sonoridades quase no limite do múrmurio (frequentemente com recurso aos harmónicos agudos do violino) e meticulosas teias sonoras, dando expressão ao que o próprio Pintscher designou como “virtuosidade concêntrica”. Renaud Capuçon soube responder aos grandes desafios da obra com grande domínio técnico e poder expressivo, mostrando boa sintonia com a linguagem e a estética do compositor.

A segunda parte foi inteiramente preenchida com a integral do bailado O Pássaro de Fogo, de Igor Stravinsky, em vez das habituais suítes, com uma selecção de números da obra, que se costumam tocar em concerto. O exuberante colorido da obra, com acentuados traços de exotismo, a sua vivacidade e complexidade rítmica e toda a variedade de quadros e ambientes que acompanham o desenrolar do conto russo foram eficazmente transmitidos pela Orquestra Gulbenkian sob a direcção de Matthias Pintscher, que logrou um bom equilíbrio de desempenho dos vários naipes. No final, a assistência reagiu com longos e calorosos aplausos.

 

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