Descongela e põe no frigorífico

O Governo inventou ontem o descongelamento de carreiras sem impacto no Orçamento de Estado. O que é isso? Nenhuma ideia. Mas, por favor, palmas para os grandes artistas.

O segredo da actual solução de Governo sempre consistiu num jogo de sombras políticas: o Governo finge que dá mais do que efectivamente dá, e os partidos que o apoiam fingem que recebem mais do que efectivamente recebem. Este jogo infantil faz feliz a União Europeia, na medida em que o país lá vai cumprindo as metas sem chatear muito – e com o patrocínio, imagine-se, da extrema-esquerda –; faz feliz PS, Bloco e PCP, pois permite-lhes encherem a boca com o sucesso das reversões e com o esgarçado “virar da página de austeridade”; e faz felizes milhões de portugueses, estranhamente disponíveis para serem enganados. Contudo, há alturas em que o choque entre o simulacro de realidade e a própria realidade é inevitável, produzindo momentos absolutamente caricatos. Ontem foi um desses momentos, em pleno dia de greve dos professores.    

Como se sabe, os professores exigem não só o descongelamento das carreiras, até porque este já está garantido, mas também a contagem, para efeitos de progressão, dos oito anos em que estiveram congeladas (de 2005 a 2007 e de 2011 a 2017). O Governo fez as contas e disse que tal era incomportável: a medida teria um impacto imediato de 600 milhões de euros no Orçamento do Estado, o que é incompatível com o alegado rigor orçamental. A Fenprof e a FNE não se deixaram impressionar e avançaram para greve. Ora, como uma greve nos dias de hoje não é como uma greve de antigamente, porque é suposto o Governo ser muito amigo dos trabalhadores e estar disponível para lamber todas as feridas infligidas pela troika, a solução encontrada foi a do costume, mas em dose alucinatória: o jogo de sombras foi tão intenso que ao final do dia sobravam apenas informações desgarradas e totalmente contraditórias.

Senão vejamos. Durante a manhã tivemos as habituais rondas mediáticas por escolas fechadas e declarações sindicais de adesão acima dos 90% (como a escala sindical começa nos 90 e acaba nos 100, achei um pouco decepcionante). Até parecia que estávamos no tempo de Passos Coelho. Mas por pouco tempo. A seguir veio a primeira reacção do Governo, em modo compincha: a secretária de Estado da Educação, Alexandra Leitão, afirmou que iria procurar um modo “de a contagem da carreira docente ser, de alguma forma, recuperada”. O segredo está no “de alguma forma”, como é óbvio. Ainda assim, a frase foi mais do que suficiente para Mário Nogueira cantar vitória em frente ao Parlamento, dispensando grandes hermenêuticas. “O pulso dos professores é muito forte”, disse ele. Certo. Só que a língua do Governo também.

E então aconteceu isto: enquanto a Fenprof anunciava que a força dos professores tinha obrigado o Governo a alterar a sua posição negocial, o Governo garantia que não estava previsto gastar mais com progressões nesta legislatura. A mesma Alexandra Leitão que anunciou de manhã a recuperação da contagem do tempo de serviço congelado, afirmou à tarde que o tempo do congelamento “não é matéria para o Orçamento do Estado”. Neste jogo de sombras todos se mexem, todos dizem coisas, todos parecem desempenhar os seus papéis, mas ao fim do dia só sobra uma tremenda opacidade, porque ninguém fala claro. Não se percebe o que é que Mário Nogueira festejou, não se percebe o que é que o Governo prometeu, e não se percebe o que é que os professores ganharam. O Governo inventou ontem o descongelamento de carreiras sem impacto no Orçamento do Estado. O que é isso? Nenhuma ideia. Mas, por favor, palmas para os grandes artistas.

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