“Cidades amigas das pessoas devem ser um direito humano básico”

Jan Gehl, arquitecto dinamarquês que escreveu um dos mais influentes livros de urbanismo, vem a Lisboa apresentar a versão portuguesa da obra. Elogia a câmara pelas obras "boas e úteis" que está a promover na frente ribeirinha.

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Nuno Ferreira Santos

Protecção, conforto e prazer. É isto que arquitectos e urbanistas devem ter na cabeça quando planeiam o espaço público das cidades: protecção, conforto e prazer para as pessoas, não para os carros. O arquitecto dinamarquês Jan Gehl anda a defender estas ideias há mais de quarenta anos, mas só na última década as começou a ver implementadas no terreno com mais constância, um pouco por todo o mundo.

Debaixo desses três grandes chapéus, Gehl definiu doze critérios para o bom espaço público “que têm o corpo humano como ponto de partida”, explica o arquitecto de 81 anos ao PÚBLICO. Esta quinta-feira, 46 anos depois de ter lançado o livro A Vida entre Edifícios, no qual apresentou estes conceitos pela primeira vez, Jan Gehl está em Lisboa para lançar a versão portuguesa da obra, promovida pela editora Tigre de Papel, pela Cicloficina dos Anjos e pelo ISCTE (o lançamento é no ISCTE às 18h).

Então como agora, o humano está no centro da sua teoria, que pretende ser global. “Somos todos animais caminhantes, temos todos a mesma história biológica, os mesmos comportamentos básicos e os mesmos sentidos”, diz.

Os doze critérios, adoptados como mandamentos de muito urbanismo contemporâneo, são a protecção contra o tráfego automóvel e acidentes, contra o crime e contra experiências sensoriais desagradáveis (ventanias, chuvadas, poluição, entre outras). Da lista constam também, debaixo do chapéu do conforto, as possibilidades de andar, ficar, sentar, ver, conversar, brincar. E, por fim e de forma a garantir prazer no espaço público, ele deve ser construído à escala humana e com qualidade estética, permitindo igualmente desfrutar dos “aspectos positivos do clima” – o sol, as sombras, o calor, a frescura. A partir desta checklist mais ou menos indispensável, o que vier por acrescento é uma vantagem, defende Gehl. “A cultura local, a topografia, o clima e a história podem e devem acrescentar outras dimensões”, explica o arquitecto.

No livro, Gehl desenha uma cronologia da evolução das cidades desde a Idade Média para explicar como, chegados ao princípio do século XX, os arquitectos optaram, quase por obrigação, por uma nova forma de planeamento urbano. “A história do modernismo como ideologia arquitectónica remonta aos anos 1920 e foi uma tentativa de garantir condições de vida melhores e mais saudáveis para os trabalhadores, por oposição às zonas de barracas sobrelotadas do início do século”, explica. Com esse propósito sanitário em mente nasceram os prédios altos em bairros exclusivamente residenciais. “Não foi sequer considerado que o desenho de edifícios pudesse influenciar actividades recreativas, padrões de contacto e possibilidades de encontro”, argumenta Gehl.

Apesar da “boa intenção” inicial, o modernismo “degenerou depois de 1960 numa produção de edifícios em massa, tecnocrática e com pouca preocupação pelas pessoas e pela vida”, diz o arquitecto ao PÚBLICO, identificando o Dubai como um exemplo de “modernismo decadente tardio”.

Por oposição a este urbanismo que tornava irremediável o recurso ao carro, Jan Gehl propõe a tal vida entre edifícios. O que é, afinal? “Não é meramente o tráfego pedonal ou as actividades recreativas ou sociais. A vida entre edifícios compreende todo o espectro de actividades que se combinam para tornar os espaços comunais nas cidades e nas áreas residenciais atraentes e significativos”, lê-se no livro.

Em 2015, Jan Gehl esteve em Lisboa e deu uma conferência na câmara municipal, que elogia pelas obras que tem promovido na frente ribeirinha – são “boas e úteis”. A capital portuguesa é uma das cidades em que identifica a presença de uma “importante mudança nos paradigmas de planeamento urbano”, que começou por volta do ano 2000 e que teve como causa e efeito que “cidadãos e políticos exijam cada vez mais cidades saudáveis, sustentáveis e habitáveis”.

Mas isso não chegou às escolas de arquitectura, de um modo geral. “A maioria das escolas ainda ensina que: se tem bom aspecto, também será bom. Isto não é mesmo verdade. Há incontáveis locais no mundo que ganharam grandes prémios de arquitectura, mas que não funcionam para as pessoas”, comenta Gehl. E esse é o ponto: "Cidades amigas das pessoas devem ser um direito humano básico". 

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