Pintura de Leonardo da Vinci esmaga todos os recordes: 382 milhões de euros

Com a autoria do mestre do Renascimento italiano apenas ratificada em 2011, Salvator Mundi foi leiloada na Christie’s em Nova Iorque por uma soma que superou todas as expectativas.

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Salvator Mundi (1506-1513) é um retrato a meio corpo de Cristo LUSA/JUSTIN LANE
<i>Salvator Mundi</i> (1506-1513) é um retrato a meio corpo de Cristo
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A pintura de Leonardo era até agora propriedade do oligarca russo Dmitry Rybolovlev Reuters/Peter Nicholls
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A disputa fez-se apenas a dois, com compradores anónimos a licitar por telefone LUSA/PETER FOLEY
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Era um desfecho esperado, mas não por estes números: a venda de Salvator Mundi (1506-13), de Leonardo da Vinci (1452-1519), bateu esta quarta-feira todos os recordes do mercado de arte, num leilão realizado na Christie’s de Nova Iorque (que terminou quando já era madrugada de quinta-feira em Lisboa). Em apenas 19 minutos, a tela de 65cm x 45cm que representa Cristo a meio corpo com a mão direita levantada e a esquerda segurando uma esfera de cristal quadruplicou a estimativa inicial de 100 milhões de dólares (quase 85 milhões de euros), para ser licitada por 450,3 milhões (382 milhões de euros) por um comprador cuja identidade não foi divulgada pela leiloeira.

Numa sala forrada a branco e sobrelotada com compradores de todo o mundo, como referem as reportagens da imprensa internacional, o leilão começou calmo com a licitação de uma obra de Adam Pendleton. Mas, um quarto de hora depois, a chegada ao lote 9B provocou o sobressalto previsível. Demorou apenas três minutos a que os 70 milhões de dólares de base de licitação fossem triplicados após sucessivas ofertas. A partir de certa altura, a disputa fez-se apenas a dois, com compradores anónimos a licitar por telefone. Passados menos de 20 minutos, Salvator Mundi tinha sido arrematada por 400 milhões de dólares, a que acrescem 50,3 milhões de comissões.

A obra-prima de Leonardo, até agora propriedade do oligarca russo Dmitry Rybolovlev e designada “o Santo Graal de todos os artistas” pelo responsável pelo departamento de pintura antiga da Christie’s, François de Poortere, batia todos os recordes. Tinha não só ultrapassado Pablo Picasso e o seu Les Femmes d’Algiers (version 0), de 1955, que fora vendido há dois anos pela mesma Christie's em Nova Iorque por cerca de 160 milhões de euros, e detinha o recorde anterior de vendas em leilão; mas também, tanto quando é possível saber, superando o recorde de vendas privadas com os cerca de 255 milhões de euros despendidos pelo financeiro Kenneth C. Griffin na aquisição de uma pintura de Willem de Kooning, Interchange, também em 2015.

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Cortesia Christie's

“Este foi um grande momento para a Christie’s, e acredito também um grande momento para o mercado da arte”, comentou, no final do leilão, o director-geral da leiloeira, Guillaume Cerutti. “É um momento extraordinário para a pintura antiga e para o mercado; e é muito difícil descrever o que verdadeiramente se passou aqui”, acrescentou François de Poortere, citado pela AFP.

Francisco Laranjo, pintor e ex-director da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto (FBAUP), ficou também "surpreendido" com os valores atingidos no leilão. "Eu não duvidada que iam ser batidos recordes, mas não imaginava que pudessem atingir estes números", disse o responsável pela exposição Cinco Séculos de Desenho na Colecção da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, que em 2012 mostrou pela última vez ao público o desenho de Leonardo que integra a colecção da instituição portuense, e que é o único existente em Portugal.

No mesmo sentido se manifestou José Alberto Seabra Carvalho, director adjunto do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA): “Os deuses parecem estar loucos!”, exclamou, considerando não ser, no entanto, estranho que “as expectativas mais altas tivessem sido ultrapassadas”. “Em situações raras como esta há sempre um frisson muito grande, a junção do amor pela arte com os interesses que a envolvem resultam neste cocktail”, disse ao PÚBLICO o responsável pelo MNAA e especialista em arte antiga.

E o mundo da arte antiga, actualmente um pouco deprimida, pode vir a usufruir dos reflexos que esta venda de um Leonardo previsivelmente podem trazer para o sector. “É claro que para o Leonardo isso já não acontecerá, porque não há mais nenhuma obra em mãos privadas – e esta surgiu já mesmo como supranumerária”, comentou Seabra Carvalho, referindo-se às circunstâncias que envolveram a autentificação de Salvator Mundi. Mas admite que o resultado deste leilão é “uma boa bandeira” para a revalorização da arte antiga, “num campeonato que, no entanto, é sempre muito volátil”. Resta agora saber quem comprou o Leonardo, se foi um grande museu internacional ou um coleccionador, e “esse é também um dado sociológico a ter em conta”, nota este historiador de arte.

Francisco Laranjo vê neste recorde da obra de Leonardo um bom sinal. Significa que “quanto mais avança a tecnologia, mais fascínio há pelos autores e pela cultura clássica, pelos valores de ressonância universal”. E assistir a isso “nestes tempos de uma humanidade sofisticada, mas simultaneamente desenfreada e louca, é uma grande alegria”.

História longa

O leilão deste “último” Leonardo em Nova Iorque foi precedido de uma história longa e atribulada, com episódios no mínimo insólitos, o menor dos quais não será a venda da tela, pela primeira vez, num leilão da Sotheby’s de Londres, em 1958, por… 45 libras. E longa não apenas por se tratar de uma obra pintada há já mais de cinco séculos – os historiadores de arte situam a sua criação pouco tempo depois de Mona Lisa (1503) –, mas também pelas dúvidas que foram acompanhando a sua autoria.

Salvator Mundi tinha sido recentemente restaurada e era a única pintura do grande mestre renascentista ainda na mão de privados. A Christie’s, através do seu especialista Alan Wintermute, acredita que a tela foi pintada respondendo a uma encomenda do rei francês Luís XII (1462-1515), mesmo que os documentos conhecidos atribuam a sua propriedade a Carlos I de Inglaterra (1600-1649). Após a decapitação deste monarca, a pintura foi passando de herança em herança e de mão em mão, até que no início do século XX foi adquirida por um coleccionador vitoriano, John Charles Robinson. Nessa altura, pensava-se que tinha sido pintada por um dos discípulos de Leonardo, Bernardino Luini.

Depois do leilão em meados do século passado, o silêncio voltou a abater-se sobre Salvator Mundi, que reapareceu então em 2005, num leilão nos Estados Unidos, onde foi comprada por menos de dez mil dólares por um grupo de investidores, que incluía o historiador de arte Robert Simon.

Nessa altura, achava-se que tinha sido pintada por outro aluno de Leonardo, Giovanni Antonio Boltraffio. Mas Robert Simon, consultor do Metropolitan Museum, mobilizou a realização de um aturado trabalho de exame e investigação que, simultaneamente com o restauro da tela, veio resultar na confirmação da autoria de Leonardo por uma equipa de peritos em 2011. A integração de Salvator Mundi na grande exposição dedicada ao mestre do Renascimento pela National Gallery, em Londres, na viragem desse ano para 2012, viria a consagrar definitivamente essa autentificação, que não deixaria, contudo, de passar também pelos tribunais.

Em 2013, a pintura foi comprada pelo magnata russo Dmitry Rybolovlev (patrão do clube de futebol AS Mónaco), que então pagou 108,3 milhões de euros, e que agora decidiu vendê-la de novo.

Quando, no passado mês de Outubro, anunciou a inclusão de Salvator Mundi no leilão de 15 de Novembro, a Christie’s, através de Alan Wintermute, chamou-lhe logo “o Santo Graal dos mestres da pintura antiga”. “Procurado desde há muito tempo, parecia um sonho até aqui inalcançável. Ver uma obra-prima tardia de Leonardo, completamente terminada, feita no auge do seu génio, aparecer para venda em 2017 é o mais perto que já estive de um milagre”, disse este especialista da Christie’s, que para este leilão promoveu uma campanha mediática e publicitária sem precedentes, e que também por isso pode vir a mudar o rumo do mercado da arte.

Notícia actualizada com depoimentos de Francisco Laranjo e José Alberto Seabra Carvalho.

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