A cidade experimental

"A cidade está mais bonita nas suas ruas e praças, mesmo perdendo a cada obra pública a oportunidade de alinhar as tampas dos esgotos com o pavimento, um desalinho, quer o metafórico quer o fundido, que é tão único em Lisboa."

Lisboa ainda não sabe exactamente como lidar com o crescimento do turismo dos últimos anos. Espera-se que aprenda em breve, para bem de residentes e de visitantes. Por enquanto sente-se ainda o experimentalismo no ar.

Os prédios vão-se recuperando, os novos hotéis e alojamentos locais garantem cama e roupa lavada aos turistas e novo emprego aos residentes (dos concelhos limítrofes, bem entendido), os restaurantes abrem (e fecham), a cidade está mais bonita nas suas ruas e praças, mesmo perdendo a cada obra pública a oportunidade de alinhar as tampas dos esgotos com o pavimento, um desalinho, quer o metafórico quer o fundido, que é tão único em Lisboa que seguramente virá a ser uma técnica artesanal protegida pelos nossos vindouros. Tal como proteger os peões nos atravessamentos ou ser eficaz na redução da velocidade automóvel.

Pode também concorrer para essa artesania a recente experiência de pavimentar estradas com uns calhaus pontiagudos, para ali atirados de forma artisticamente blasée, de modo a que não se pretenda sequer que a sua função seja receber automóveis a passar por cima – como na Praça do Comércio ou na Cidade Universitária. Mas só para serem infelizmente removidos algum tempo depois, seguramente a expensas públicas, depois de destruírem alguns veículos e se menorizarem a si próprios, e serem substituídos por uma coisa nova e surpreendente que se chama alcatrão, que tem cumprido a função apesar de deixar muito a desejar no campo da sinastesia, é certo.

Esta perda é compensada, contudo, com o facto de o alcatrão de Lisboa ser o pior do Mundo, cientificamente comprovado, e portanto nenhum do aplicado durar muito. Não sei o prazo da garantia das obras públicas, mas sei que ele não pode existir em Lisboa. Isso contrariaria logo toda a estética da cidade, que se faz numa contínua e visível tensão entre camadas de tempo e de civilizações. E de jantes também. E só isso, a tensão entre civilizações e jantes, rebenta com qualquer novo tapete de asfalto passadas três semanas, dois aguaceiros e cinco escarradelas , como é sabido.

Não obstante a dureza dos caminhos, ainda há turistas que continuam a acondicionar por tempo indeterminado as suas caravanas e acampar ao lado do Tejo, junto ao MAAT e à estação fluvial em Belém sem qualquer consequência e mesmo ao lado de um sinal envelhecido de proibição de parqueamento de... auto-caravanas. E a alameda fronteira ao mosteiro dos Jerónimos, a poucos metros da sua entrada principal, continua a ser um imenso parque de estacionamento de autocarros.

Alguém imagina que seja possível estacionar dezenas de autocarros ou montar dezenas de auto-caravanas a poucos metros dos monumentos identitários de uma outra capital europeia? Em Lisboa pode-se. É também esta irreverência, esta desobediência de neblina ao fundo, que seguramente encanta quem cá vem. O melhor é não mexer. O que seria da cidade sem a andaluza anafada que se rebola a custo pelos 20 metros que a separam entre a sua camioneta e a sua fé em S. Jerónimo, ambas quentes e inamovíveis? Ou como poderia a economia de Lisboa prescindir da venda do tetrapak de vinho nacional, que encanta, pela sua eficácia de forma e especialmente de fim, o caravanista francês abancado na sua mesa à beira rio, ao lado da sua casa com vista – e com rodas?

Sabe-se que o eléctrico 28 é um percurso bonito. E cada vez mais um tormento evidente para todos, quer lá dentro, quer para quem aguarde nas paragens. Se bem que chamar paragem de transporte público a um poste metálico erecto num passeio para peões que não terá mais de metro e pouco de largura, como na Baixa, é seguramente mais uma das genuinidades características de Lisboa.

Os taxistas do aeroporto de Lisboa continuam também a ser escolhidos a dedo. No sentido de aqueles que pensam que podem brindar um estrangeiro com alguma seriedade e simpatia serem imediatamente apontados pelos seus pares e expulsos dali para fora, que há afinal uma reputação a manter firmemente. Há poucos anos, sentindo-me responsável por uma reunião que trouxe algumas dezenas de pessoas a Portugal e sentindo-me especialmente envergonhado, a coisa só se resolveu com polícia literalmente a espreitar pela porta de cada táxi apanhado no aeroporto.

Este é sem dúvida um país onde a História pesa e Lisboa deve ser desde o primeiro momento a very personal experience, como diz o Turismo de Portugal. Ou, como me sumariava há uns anos um taxista (de Lisboa, claro!) com o seu quê de inclinação para as belles lettres,  “isto tem de ser tudo muito docemã...”

Sugerir correcção
Comentar