O país na Web do Panteão

De uma vez por todas, o país precisa de dar conta que mudou radicalmente na última década.

A Web Summit não teve apenas o mérito de nos pôr a discutir sobre o futuro. Serviu também para nos obrigar a falar sobre a relação que temos com o passado. É estranho e revelador que um encontro mundial sobre tecnologias, negócios e inovação tenha sido capaz de desencadear entre nós tanta hostilidade e devoção, tanto desprezo e paixão incontida, tanto futuro e tanta memória. Foi como se, de repente, o velho Portugal dual de Adérito Sedas Nunes, que resiste teimoso desde os anos de 1970, se vestisse de gala para exibir sem pudor todos os seus atavismos e as suas vanguardas, as suas crenças na modernidade e as suas frustrações com o presente, a sua raiva com tudo o que é sucesso ou o seu deslumbramento por tudo o que vem do estrangeiro. A Web Summit é um encontro de primeira importância internacional, bem o sabemos, mas o seu poder de produzir tantos abalos no país é sinal claro de que o país ainda se deixa abalar com facilidade.

Para podermos reflectir com um mínimo de substância sobre as críticas que se fizeram à cimeira, temos de as dividir em duas categorias: as que se incomodaram com a ritualização do empreendedorismo e a tecnologia, ungindo-os com códigos de celebração, de palavras e de modos de estar que denunciam sectarismo; e as que recusam liminarmente a ideia de que faça sentido celebrar-se a nova economia ou dissertar sobre a inteligência artificial num país atrasado e anacrónico como, supostamente, será Portugal — o historiador Rui Ramos chegou a vituperar no Observador a ideia dos que acreditam poder “replicar Silicon Valley numa qualquer Albânia, desde que haja sol e a cerveja seja barata nessa Albânia”.

Percebem-se os argumentos dos primeiros. Foi possível verificar que, muitos dos que quiseram ou puderam estar na Web Summit o fizeram com aquele ar de superioridade parolo, próprio de quem vive acima do país ou num país imaginado e paralelo. Para esses, o Portugal dos fogos é rude e feio e moldado por saberes e tradições que deviam estar no caixote do lixo da História. A forma como muitos desses devotos falam ou se posicionam sugere uma liturgia baseada na crença de que é possível fazer um país novo, cheio de startups, páginas web e unicórnios, sem ter em conta a realidade profunda onde entram coisas aborrecidas como o interior despovoado, as pequenas e médias empresas onde trabalha gente info-excluída, ou os subúrbios das cidades onde esse admirável mundo novo não passa de uma fantasia que a cada summit aparece na televisão.

Mas já não se percebem os argumentos dos que olham para o ritual da Web Summit e o consideram como uma pura exibição de uma moda incapaz de vestir um país que vêem como atrasado e condenado a definhar nesse atraso. Para esses, Portugal sempre foi, é e continuará a ser uma choldra feita por grunhos atávicos, irremediavelmente pobres e incapazes de perceber a direcção da modernidade da economia. Ora isso deixou de ser verdade. Portugal integra o pequeno grupo dos países que no relatório do Fórum Económico Mundial aparecem incluídos na lista das economias baseadas na inovação. A exportação de serviços tecnológicos tem crescido nos últimos anos de forma surpreendente e é hoje um factor fundamental para o equilíbrio da balança externa — vale mais de seis mil milhões de euros. Portugal tem empresas de tecnologia e informática de classe mundial. E o talento e as competências das novas gerações de jovens universitários são a prova acabada de que o país tem neste novo mundo da economia digital um papel a representar.

Que a celebração do final da Web Summit tenha acontecido no Panteão Nacional é apenas uma forma de nos permitir situar melhor os dois extremos do debate e de ensaiar uma ponte para travar a discussão estéril que se ouviu nos últimos dias. Quando gente de olhos postos no futuro escolhe um lugar que homenageia o passado do país para comer, beber e fazer a festa, há algo que não bate certo. Quando um Estado vende o espaço destinado a enaltecer a sua própria memória solene, temos todas as razões para duvidar da sua credibilidade e sentido. Mas, esquecido o disparate e o absurdo e a “indignidade”, centremo-nos no essencial.

Que país queremos e que síntese podemos fazer entre as heranças do nosso atraso e o potencial que uma nova geração de olhos postos no futuro nos propicia? É aqui que a própria Web Summit nos ajuda a encontrar uma resposta. Esse evento faz-se cá porque há apoios públicos, porque Lisboa é uma cidade maravilhosa onde a “cerveja é barata”, mas também porque nas grandes cidades ou nas cidades médias onde há boas universidades há segmentos de inconformismo e de vanguarda que encaixam bem nos próprios valores da cimeira.

Se olharmos com atenção para as mudanças profundas na nossa economia, se quisermos entender como é que, perante a pressão do ajustamento e da troika, as exportações passaram em menos de uma década de cerca de 33% do PIB para perto de 45%, veremos que boa parte das respostas estão no compromisso das empresas nacionais para com o futuro. As outrora “indústrias tradicionais”, como a têxtil e o calçado, ou a agricultura, são hoje histórias de sucesso porque souberam pegar numa base de saberes dita “tradicional” e acrescentaram-lhe ciência, tecnologia e serviços. Condenar a Web Summit por estar “demasiado à frente” ou pretender que não passa de uma “Ovibeja com Internet” é desprezar todo esse caminho feito pelos empresários nacionais — e, já agora, uma magnífica feira da nossa agricultura.

De uma vez por todas, o país precisa de dar conta que mudou radicalmente na última década, que está muito mais bem equipado para apanhar o comboio do futuro. Ainda não é a Irlanda ou os Estados Unidos, mas, definitivamente, não é a Albânia nem a Polónia. Mesmo que muitos dos tiques dos “nerds” nos incomodem, ainda que a sagrada religião do empreendedorismo nos suscite o enfado que a ignorância ou o autoconvencimento nos merecem, emular a Web Summit, incentivar o risco e a vontade de fazer por parte dos jovens, ou apostar nos novos negócios da economia digital é fundamental para puxar pela vanguarda do país. Havendo esse arrastamento, o resto, que é infelizmente a maior parte da economia e do tecido social, acaba por ir atrás.

É por isso que o Orçamento do Estado para 2018 nos deve merecer censura, porque, uma vez mais, as suas medidas dirigem-se não para a vanguarda dinâmica de Portugal, mas principalmente para a sua face mais conservadora e estática. O país muda, a política não. O país olha para a frente, e o Governo reproduz estratégias do passado. O Orçamento de 2018 é anti-web, anti-inovação e antimodernidade, nada faz por criar as condições que a Web Summit exalta. Não bastará para travar a tendência, até porque os últimos e penosos anos da troika mostraram que a economia real consegue sobreviver em ecossistemas difíceis. Mas não a acelera. Num ano de folga, em que em cima da mesa está a aposta na Web ou no Panteão, o Governo apostou no segundo.

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