Resgatar Santareno e o desejo de uma vez só

Bernardo Santareno entrou sem pezinhos de lã no teatro em Portugal. Foi há 60 anos, sob uma distracção da Censura e a crítica da reacção católica, que não gostou de ver um Portugal preso a uma fé castradora exposto num palco da segunda maior cidade do país. A Promessa está de volta ao Porto.

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A estreia de A Promessa é também a primeira aproximação do TNSJ, em produção própria, ao trabalho do médico-psiquiatra António Martinho do Rosário Nelson Garrido

Conta-se, nos jornais da época, que na rua e nos cafés do Porto, há 60 anos, não se falava de outra coisa. Naquele final de Novembro, sua (ir)reverência António Pedro inaugurava a temporada de 1957 do Teatro Experimental do Porto, e a fase profissional da companhia, com a peça de estreia de um jovem dramaturgo, Bernardo Santareno, que colocava em cena a angústia de uma jovem e sensual mulher, Maria do Mar, impedida de consumar o seu casamento por causa de uma promessa. A Censura, que até viu no drama uma “comédia”, gostara do que observara nos ensaios, e a cidade também, como provam as mais de 7500 pessoas que, durante oito dias foram enchendo o Teatro de Sá da Bandeira. Mas a Igreja Católica nem por isso. Num país claustrofóbico, A Promessa, como a liberdade, foi suspensa, e o Porto nunca mais a viu. Até hoje.

Desempoeirado o país, e remetida a religião para espaços mais privados da esfera social, Maria, agora interpretada por Joana Carvalho, e José (Paulo Calatré), um casal votado à castidade como promessa pelo salvamento, num naufrágio, do pai deste último, Salvador (Jorge Mota) voltam por estes dias a um palco do Porto pela mão do encenador João Cardoso, que passou, ele próprio, pelo TEP. E este é um regresso carregado de simbolismos. Passados 60 anos, a estreia, esta quinta-feira, de A Promessa no Teatro Nacional de São João é também a primeira aproximação do TNSJ, em produção própria, ao trabalho do médico-psiquiatra António Martinho do Rosário. Outra inauguração, portanto.

A peça inaugural daquele que é por muitos considerado o maior dramaturgo português do século XX não teve sorte muito diferente do restante repertório de Santareno, a quem foi dado sempre pouco palco. E, num acto de contrição, Nuno Carinhas, director artístico do São João, questiona “quanto tempo é preciso para ver emergir o corpo da obra de um dramaturgo que arrasta consigo os fantasmas sacrificiais com tanto sangue dentro - desejo e frustração, sedução e medo? confrontos e riscos mortais que à época foram julgados subversivos”.

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Nelson Garrido

Mais do que um texto que coloca em causa o Portugal católico do Salazarismo, A Promessa é pois sobre o desejo e subversão. Ou não fosse subversivo desejar mais do que a vidinha pacata e a paz, naquele final de 57 - como se perceberia meia dúzia de meses depois, com as eleições presidenciais em que Humberto Delgado desafiaria o regime. Podíamos, assim, ler ali um país, abdicando das liberdades em troca da paz - garantida, lá está, por um pai salvador -  e repartido entre aqueles que aceitam e acentuam essa condição de subserviência (José) e os outros que não escondem, como não esconde Maria, a frustração de uma incompletude, a revolta perante a claustrofobia política e social. Elemento bem presente no original de Santareno, que situa a acção numa aldeia de pescadores, onde uma mulher, qualquer mulher de pescador, vivia constrita entre a pressão da comunidade e o mar, força motriz, e ao mesmo tempo destruidora.

E não falta mar a esta encenação de João Cardoso - que não deixa, por um segundo que não sintamos a sua presença, audível. E a claustrofobia foi acentuada pela adaptação do texto, que deixou de lado cenas passadas no exterior, para se concentrar no interior da casa de Salvador, onde para além de José e Maria vive o outro filho, o adolescente cego e místico Jesus. Casa sem porta que se veja, como nas aldeias (de terra ou de mar). Casa onde a aldeia - o padre, a mãe de Maria do Mar, as vizinhas - entra, como se não houvesse privacidade. E onde entra também o motor da subversão, Labareda, jovem contrabandista, perseguido e ferido pela guarda, salvo pelas duas mulheres para acabar a colocar toda aquela família em desgraça.

Escrevia Santareno em 1961 que “é no Homem, nas suas urgentes e sangrantes ansiedades, que está a raiz da actual criação dramática; no homem vivo, entenda-se: os fósseis, os anquilosados, os bem instalados em seus céus de banha irrespirável, esses..não contam. (...) Por isto, o teatro português não pode deixar, ele também, de percorrer um destes caminhos: por isto mesmo, ele não poderá ser outra coisa que não seja denúncia em primeiro lugar, e, depois, esperança, político-social (ou religiosa) ou contemplação desesperada do absurdo".

Perante o absurdo da sua promessa - que a impede de consumar o casamento, de se exprimir sexualmente e, também, como mãe, Maria do Mar deixa-se seduzir pelo jovem de olhos profundos. Nunca perceberemos bem se chega a cometer adultério, mas toda a tensão avivada pelo seu conflito interior coloca-nos perante a condição feminina numa sociedade tradicional. Ontem decerto, hoje talvez. Na rebeldia - contra Deus, contra o marido, contra o sogro que se salvou, é certo, mas foi devolvido de pernas partidas, e inútil, tornando-se mais um fardo para a mulher da  casa -, Maria do Mar assume todas as dores das mulheres do seu tempo. Vogando entre a necessidade de reprimir a pulsão sexual castrada pela promessa e o desejo que lhe entrou porta dentro, e que ela tem dificuldade em varrer dali para fora.

João Cardoso assume que foram estas tensões dramáticas, individuais, o que lhe interessou levar para o palco, mais do que a religiosidade bastante vincada no texto original - em José, sacristão da paróquia, no Padre, que estranha as ausências de Maria do Mar na missa ou no misticismo de Jesus (Élio Ferreira), uma criança a quem um anjo negro roubou a luz, descreve Maria do Mar, e que cumpre, nesta obra, o clássico papel do oráculo das desgraças. Um papel a que, em mais um gesto subversivo, naquele Portugal de 57, Santareno acrescenta uma camada fina, quase disfarçada, de pulsão homossexual, tema a que foi regressando, aqui e ali, na sua obra, até ao momento em que, libertado o país, pode ele também assumir, na plenitude, a sua própria homossexualidade.

Labareda (Pedro Frias), não deixa ninguém indiferente. Homens e mulheres vêem-se colocados em causa perante o contrabandista, que sai das margens da lei para desafiar a ordem dos valores vigentes e expôr a fragilidade destes perante a condição humana e as nossas forças interiores que, como o mar, ali tão presente, têm os seus momentos de fúria destruidora. Ele é, em palco, um pedaço da vida do autor, antítese da católica Maria Ventura Lavareda, mãe de Santareno, e transgressor como o pai, Joaquim Martinho do Rosário, o anarquista que um dia foi “roubar” o jovem António ao seminário, que não queria que ele seguisse Letras mas não conseguiu impedir que o psiquiatra exprimisse, ao longo da vida, o desejo de escrever.

Fê-lo assentando raízes, em A Promessa, mas noutras peças também, da sua primeira fase, entre o povo das aldeias, pescando ou escavando, na profundidade da sua linguagem popular, tão marcada pelos ritmos das tarefas do mar ou da terra, uma riqueza metafórica que sobressai nesta nova produção do TNSJ. João Cardoso assume a dificuldade, e o desafio, de trabalhar um autor português, e a língua portuguesa, bem como a opção de despir o palco de muitos dos artefactos cénicos propostos no texto original, para deixar que quase tudo se resuma aos corpos, e à força de palavras como aquelas com que Maria do Mar exprime a sua revolta perante o marido: “Que o mar ruim o beba, que mil polvos o abracem, que se mude em chaga viva a sua carne de lodo”.

António Pedro apreciou este talento de Santareno, à primeira. “Se aferisse pelo meu entusiasmo por ela, o valor de uma peça, raras estariam colocadas nessa tabela acima desta e, com certeza, nenhuma outra em Portugal. É que aqui, o que é da poesia e o que é do teatro deram-se as mãos admiravelmente numa realização a que falta pouquíssimo para ser uma obra prima. A poesia, o teatro e um conhecimento humano dessa gente humilde e honrada da borda de água que faz com que cada personagem seja, a um tempo, paradigmática e individualizada, num equilíbrio de composição que deixa atónito quem sabe ser esta peça, senão a primeira, uma das primeiras do autor”, escreveu numa nota à imprensa, a propósito da estreia.

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O entusiasmo contagiou até o censor Álvaro Saraiva, cujo parecer, citado na tese A ameaça de uma promessa, de Carla Araújo Risso, e datado de 11 de Novembro de 1957 é muito favorável à peça, que acaba por ser classificada, por erro, como uma “comédia”. “A impressão que colhi, durante o ensaio, foi a de que se trata de uma obra com real valor dramático e literário, como poucas vezes se terá visto em palcos portugueses, servida por um desempenho da maior dignidade profissional. O tema é, sem dúvida, bastante ousado e há cenas e expressões de certa crueza, mas julgo que, interpretadas devidamente dentro do clima geral da peça não podem ser reputadas como ofensivas à moral”.

Mas pouco depois da estreia a 23 de Novembro, que encheu uma sala com mais de mil lugares, as vozes mais reaccionárias acabariam por se fazer ouvir, fosse na Rádio Renascença, emissora católica, fosse por exemplo, numa publicação como a Voz do Pastor, escandalizada por algumas cenas, entre elas aquela em que, numa reação violenta de José à traição, a promessa acaba por ser quebrada e, na obscuridade, ao som do mar se sobrepõem, para citar a didascália do texto original, os “ruídos animais, ferozes” de dois corpos em convulsão, libertando um desejo reprimido. E mesmo no Círculo de Cultural Teatral, que fundara o TEP - o gesto de António Pedro caiu mal, como o demonstra o facto de cerca de três centenas  de associados terem saído desta organização.

Para o dramaturgo, que viu a peça sair de cena depois de oito dias em palco, apesar do seu sucesso de bilheteira, e que só voltaria a vê-la encenada uma década depois, no Monumental (Com Laura Alves e Ruy de Carvalho nos papéis de Maria e José), antes de António de Macedo a resgatar, pelo cinema, em 1973, não poderia haver início de carreira mais tumultuoso. O que nem por isso fez amainar o seu ímpeto subversivo, ainda que preso, nestas primeiras obras, ao destino individual das suas personagens.

Santareno, que já tinha passado parte daquele ano no mar, como médico de um arrastão da pesca do bacalhau, embarcará na Primavera seguinte no lugre Senhora do Mar, e do convívio com os homens da Frota Branca - submetidos também eles à claustrofobia dos navios, e à tensão entre o desejo e a morte, sairá, em 1958, o livro de crónicas Nos Mares do Fim do Mundo e, um ano depois, a peça O Lugre. Um texto que, retirando à faina maior o sentido da epopeia que o Regime lhe vinha colando, e centrando-se nos dramas dos seus protagonistas, de novo os pescadores, acabou, mais uma vez, por ser mal recebido pela crítica, após a estreia no D, Maria II, pela companhia de Amélia Rey Colaço/Robles Monteiro.

Nada disto explicará por que motivo, após o 25 de Abril, Santareno teve tão pouco palco para o seu trabalho. Poderia ser, como assume Nuno Carinhas no guia de leitura para esta produção do TNSJ, precisamente por esta relação dos textos com um tempo e um lugar longe dos tempos e dos lugares das famílias de classe média em que nos tornamos. “É uma poética de raízes e também por isso difícil de aceitar por património falado em português. Fosse Santareno irlandês, italiano, ou...e o sacrifício soaria a matéria escatológica universal”.

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