A democracia e o “projeto europeu”

Os cidadãos têm sido anti-democraticamente afastados de decidirem sobre o seu futuro no contexto europeu.

Um Presidente da República criticou a falta de afluência dos cidadãos numas recentes eleições europeias. Contudo, se se recordasse de que se opôs a que os portugueses fossem ouvidos democraticamente para decidirem sobre o Tratado de Lisboa facilmente compreenderia que os cidadãos têm motivos para se desmotivar de intervir num jogo em que políticos lhes impõem as suas teses pessoais, menorizando a democracia. A verdade é que os cidadãos têm sido anti-democraticamente afastados de decidirem sobre o seu futuro no contexto europeu. Alguns políticos vivem no pavor de que os cidadãos possam refletir ou, pior ainda, horror dos horrores, decidir. Contudo, a maioria dos cidadãos da UE defende a realização de referendos nos seus países, para assim decidirem democraticamente sobre a sua presença na União. Essa sua vontade é esmagada por políticos que se arrogam ter autoridade moral para apregoarem a democracia.

Em teoria, o Tratado de Lisboa visa aprofundar a democracia (enquanto se amordaçaram os povos para evitar que eles se pronunciassem em referendo). Esse tratado visa fazer com que a UE “corresponda às expectativas dos cidadãos”, enquanto nem se deixa que estes decidam quais são as suas expectativas. Defende-se a ideia de transferir para os cidadãos a definição do seu futuro, enquanto se faz o oposto, transferindo dos cidadãos para os políticos decisões de fundo sobre o nosso futuro. Estará o povo português, que desbravou o mundo, agora infantilizado e adormecido, sem noção da gravidade do que está a suceder e sem coragem de assumir a dignidade que está a perder?

A insuficiência de conteúdo inteligente nas discussões sobre o futuro da União Europeia convive com chavões tão pomposos como imprecisos como “Nós, Europeus”, “Mais Europa” ou “O” Projeto Europeu. Fala-se no “projeto europeu” como se ele fosse um conceito preciso. Na realidade, o projeto europeu é o que dele fizermos. Porque existem diversas visões sobre o que deve ser o futuro da Europa existem também múltiplos projetos europeus possíveis. Todas essas visões são respeitáveis e devem ser respeitadas. Mas alguns tentam impor a sua visão específica e, com um tique intolerante e anti-democrático, tentam desvalorizar, e mesmo insultar, outras perspetivas. A postura de um pensamento único sobre a Europa é inadmissível no séc. XXI e é um insulto aos verdadeiros valores europeus.

Mas olhemos o que as recentes eleições revelam. No conjunto da União Europeia (UE) em 1979 a afluência à votação foi de 62% mas, à medida que políticos foram sequestrando a intervenção dos cidadãos e os foram afastando das decisões e da reflexão, a afluência foi continuamente caindo, sendo de apenas 42,6% nas últimas eleições. Em Portugal, nas suas primeiras eleições europeias a afluência foi de 72% mas nas mais recentes foi de apenas 34%, menos de metade. Naturalmente, num país sem qualquer identidade nacional como a Bélgica, que ganha com o facto de poder ser a capital de uma nova visão semi-imperial, a afluência foi de 90%. Contudo, em países que têm fresca na memória a experiência de serem governados por outros que se apropriaram da sua vontade coletiva, a afluência foi ínfima, sendo de 13% na Eslováquia, de 18% na República Checa e de 24% na Polónia. Na Holanda pouco mais de um terço dos eleitores votou e na Alemanha nem metade o fez.

Não está em causa o “projeto europeu” mas, isso sim, a definição, por nós próprios, daquilo que queremos que ele seja, serena e inteligentemente, sem precipitações e sem admitir que nos ditem o nosso futuro. Cerca de 51% dos europeus têm uma imagem favorável da UE. Este valor, sendo tangencialmente positivo, é preocupante, porque, quando falamos em construir uma Europa em que irão viver os nossos filhos e os nossos netos, presos pelas decisões que “nós” agora tomarmos, deveria existir uma fortíssima adesão popular, largamente maioritária, que não existe. Quase metade dos alemães e muito mais de metade dos franceses têm uma imagem negativa da UE. Nenhum grande desígnio coletivo é verdadeiro, estável e sustentável, quando não é subscrito e sentido por uma larga maioria da população. É possível construir um projeto europeu (verdadeiramente) inteligente e mobilizador dos povos da Europa, mas talvez não assim.

Quantos cidadãos sabem indicar o nome dos deputados europeus que presumivelmente os representam? Quantos portugueses sabem o que está escrito no Tratado de Lisboa, em nome deles?

Um grande estudo de opinião em todos os países da UE conclui que apenas 30% dos cidadãos consideram que a UE “vai na direção certa” e 54% consideram que ela “vai na direção errada”. Mais de metade dos europeus considera que a economia da UE está a ser mal conduzida. Apenas 26% dos alemães, 24% dos holandeses ou 13% dos suecos desejam um maior grau de integração europeia e em nenhum país os cidadãos desejam maioritariamente que tal suceda. Não será legítimo começar a considerar como algo extremamente grave que determinados políticos nacionais e europeus imponham esse desejo que os cidadãos europeus massivamente não subscrevem?

As visões políticas megalómanas de certos políticos (que têm do mundo uma visão atrasada em décadas) são algo irrelevantes para os cidadãos europeus, para os quais a primeira prioridade é “desenvolver a economia e aumentar o crescimento”, a segunda é “aumentar a qualidade de vida” e a terceira é “manter a paz e a estabilidade”. Apenas para 9% dos europeus é prioritário “tornar a UE num grande ator diplomático na cena internacional”.

A UE deveria ser um exemplo mundial de tolerância, civismo e democracia. Só o será quando não amordaçar os seus cidadãos para que estes não possam decidir diferentemente da vontade de certos políticos e quando se compreender que todas as visões do futuro da UE são legítimas e que todas, sem exceção, devem ser pensadas e amadurecidas sem facciosismos, antes de decidir modelos de fundo, inclusive visões como a união, a federação, a confederação, o simples mercado comum ou a gestão conjunta de vertentes sociais, por exemplo. Democracia é isso. Civilização é isso. Tolerância é isso. Mas não é isso que estamos a ter.

A União Europeia é um objetivo que pode ser brilhantemente criativo e interessante. Precisamente porque a UE é importante é que os cidadãos têm que impor aos políticos a vontade coletiva, amadurecida e esclarecida, com a pressa possível mas sem precipitações que são irresponsáveis (ou mesmo deliberadas, para que ninguém tenha tempo de pensar e reagir). Se não o fizermos estaremos a admitir erros gravíssimos na UE dos nossos filhos e netos e estaremos a ferir a dignidade de uma nação inteira, menorizada na sua cidadania política. Seremos “bons europeus” se assumirmos a nossa cidadania política. São “péssimos europeus” aqueles que tentam amputá-la.

Porque é muitíssimo importante, a União Europeia deve ser um projeto inteligente e de todos, não uma dinâmica obscurantista e fanática imposta por alguns a todos.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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