As Grandes Cheias de 1967

Na madrugada de 25 para 26 de Novembro, a água tomou de assalto os arrabaldes pobres que Lisboa não conhecia. Há 50 anos, morreram mais de cinco centenas de pessoas. Mês e meio depois, os jornais calaram-se e o Governo já tinha parado de contar os mortos. Foi “uma das campanhas de silêncio mais eficazes de Salazar” e, para muitos, o acordar político dos estudantes

As zonas baixas de Vila Franca de Xira até Oeiras foram tomadas pela lama: casas e lojas inundadas, carros arrastados, as ruas submersas arquivo nacional torre do tombo
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As zonas baixas de Vila Franca de Xira até Oeiras foram tomadas pela lama: casas e lojas inundadas, carros arrastados, as ruas submersas arquivo nacional torre do tombo

Naquela madrugada de sábado para domingo, a água inundou rapidamente as zonas baixas da península da capital — de Vila Franca de Xira, Alenquer, Loures, Odivelas a Oeiras — e as histórias repetiram-se: as das famílias refugiadas nos telhados, daqueles que não saíram a tempo, dos que voltaram atrás, dos guarda-fatos caídos, das portas que se fecharam, dos carros arrastados. Foram cheias rápidas: o Tejo e os afluentes subiram três a quatro metros em poucas horas.

Morreram centenas — o Estado Novo falou em 462 mortos, os jornalistas Pedro Alvim, Joaquim Letria e Fernando Assis Pacheco contaram perto de 700 (pode ler a crónica de Pedro Alvim, "Os mortos e os fósforos", no Diário de Lisboa e que agora republicamos).

Morreram os pobres, que viviam em habitações precárias nos leitos de cheia, construídas ilegalmente enquanto Lisboa crescia para fora da cidade. E os pobres em sorte, que habitavam os andares baixos e as caves, que dificilmente deram pela entrada da água.

A lama, que cobriu os destroços e os mortos, pôs a descoberto a miséria (relatório dos bombeiros de Odivelas nas 48 horas que se seguiram às cheias). “Os estudantes associativos, a elite política das universidades, comunistas, católicos progressistas, esquerdistas e muitos voluntários atraídos por uma solidariedade que não sabiam ser proibida iam pela primeira vez conhecer o Portugal sobre o qual falavam em abstracto nos panfletos”, retrata o historiador António Araújo.

“Subitamente, apercebemo-nos de que em Portugal havia gente que vivia na miséria e que todas as estruturas que a deviam proteger não funcionaram”, diz Pacheco Pereira. Os estudantes universitários prestaram apoio voluntário às vítimas
“Subitamente, apercebemo-nos de que em Portugal havia gente que vivia na miséria e que todas as estruturas que a deviam proteger não funcionaram”, diz Pacheco Pereira. Os estudantes universitários prestaram apoio voluntário às vítimas arquivo nacional torre do tombo
Foram cheias rápidas: o Tejo e os afluentes subiram três a quatro metros em poucas horas.
Foram cheias rápidas: o Tejo e os afluentes subiram três a quatro metros em poucas horas.
Derrocada de prédio no Vale do Jamor. Na semana seguinte às cheias, ainda se retiravam corpos “das lamas acumuladas em Algés e se continuava a falar de desaparecidos” que teriam sido levados pelo Tejo
Derrocada de prédio no Vale do Jamor. Na semana seguinte às cheias, ainda se retiravam corpos “das lamas acumuladas em Algés e se continuava a falar de desaparecidos” que teriam sido levados pelo Tejo arquivo nacional torre do tombo
Alice Vieira, então jornalista no "Diário de Lisboa", foi enviada para Quintas e via pela primeira vez as “terríveis condições em que muita gente vivia, com casas de construção tão precária que eram incapazes de de aguentar o embate das águas"
Alice Vieira, então jornalista no "Diário de Lisboa", foi enviada para Quintas e via pela primeira vez as “terríveis condições em que muita gente vivia, com casas de construção tão precária que eram incapazes de de aguentar o embate das águas" arquivo nacional torre do tombo
A real dimensão da catástrofe “não ultrapassou a espessa cortina da censura”, como nota o estudo de Francisco da Silva Costa,  “As inundações de 1967 na região de Lisboa: Uma catástrofe com diferentes leituras”
A real dimensão da catástrofe “não ultrapassou a espessa cortina da censura”, como nota o estudo de Francisco da Silva Costa, “As inundações de 1967 na região de Lisboa: Uma catástrofe com diferentes leituras” arquivo nacional torre do tombo
Quintas, na várzea do rio Grande da Pipa, em Castanheira do Ribatejo, ficou debaixo de água.  A lama ultrapassou a altura da ponte. O então Presidente Américo Thomaz de visita aos destroços
Quintas, na várzea do rio Grande da Pipa, em Castanheira do Ribatejo, ficou debaixo de água. A lama ultrapassou a altura da ponte. O então Presidente Américo Thomaz de visita aos destroços arquivo nacional torre do tombo
Na madrugada de sábado para domingo, a água inundou rapidamente as zonas baixas da península da capital — de Vila Franca de Xira, Alenquer, Loures, Odivelas a Oeiras — e as histórias repetiram-se: as das famílias refugiadas nos telhados, daqueles que não saíram a tempo, dos que voltaram atrás
Na madrugada de sábado para domingo, a água inundou rapidamente as zonas baixas da península da capital — de Vila Franca de Xira, Alenquer, Loures, Odivelas a Oeiras — e as histórias repetiram-se: as das famílias refugiadas nos telhados, daqueles que não saíram a tempo, dos que voltaram atrás arquivo nacional torre do tombo
Choveu tanto na noite de 25 para 26 de Novembro que chegou a um quinto daquilo que choveu no ano todo de 1967. E eram anos de chuvas: no ano anterior (1965-66) houve 20 inundações em Lisboa e foi aquele em que choveu mais num período de 80 anos
Choveu tanto na noite de 25 para 26 de Novembro que chegou a um quinto daquilo que choveu no ano todo de 1967. E eram anos de chuvas: no ano anterior (1965-66) houve 20 inundações em Lisboa e foi aquele em que choveu mais num período de 80 anos arquivo nacional torre do tombo
“Na realidade, a água foi muita. Mas se as ‘casas’ (barracas) fossem verdadeiras casas, teriam sido arrastadas pelas águas?”, questionava a 10 de Dezembro o "Comércio de Funchal", semanário crítico do regime
“Na realidade, a água foi muita. Mas se as ‘casas’ (barracas) fossem verdadeiras casas, teriam sido arrastadas pelas águas?”, questionava a 10 de Dezembro o "Comércio de Funchal", semanário crítico do regime Terrence Spencer/ The LIFE Picture Collection/Getty Images
Fizeram-se os funerais. Retirou-se a lama. Limparam-se as ruas e o Governo atribuiu às cheias uma retórica de fatalismo
Fizeram-se os funerais. Retirou-se a lama. Limparam-se as ruas e o Governo atribuiu às cheias uma retórica de fatalismo Terrence Spencer/ The LIFE Picture Collection/Getty Images