Três sílabas de plástico

Não, isto do Panteão não ajuda, mesmo na Ajuda. Somos peritos em desassunto.

O orçamento da cultura é um não assunto, existe para dizer que está lá, toque civilizacional, sinal de pertença a um todo europeu e não a manifestação financeira da ordenação programada de um perfil dinâmico de futuro para o país, uma democracia cultural — seria isso e isso é muito mais que esta panaceia das inovações a torto e a direito com as tecnologias a colaborar alegremente nas catástrofes em marcha! Como no tanque do poema de Brecht, é necessário um condutor.

A política cultural é uma inexistência, um conjunto de assuntos aos solavancos nos media, casual e casuístico. O ministério é um mistério desestruturado, desmantelado pelo senhor Passos, primeiro-ministro da cultura. Se era apenas assunto para trela, uns trocos, algo com potencialidades de visibilidade picantes mas coisa subalterna, acachapada, agora é coisa subalterna mas mais parlamentarizada, animada de entretenimentos vários, plena de passos em volta, mas com nada de cerne visto e observado, detalhado em análise, ordenado como uma prospectiva — e não é muito complicado fazê-lo, nem orçamentá-lo, mas é necessário que sejamos necessitados de cultura como aceitamos naturalmente ir às compras, sem esforço, sem épica alguma, experimentação enraizada no quotidiano, vida emancipada, culturalmente diversa, expressa no dia-a-dia como outra coisa diversa do “shopping and fucking” — nada contra, mas outra coisa, amor e alegria por perto e por certo.

E a questão — e era tão bom que existisse uma questão cultural debatida nos detalhes para além da questão única, macrocultural e orçamentalista — entra sempre na agenda pela porta errada, agora o Panteão, modo de alimentação dos vorazes mediocratas e seus factótuns, até que venha a próxima. Imaginem a Torre de Belém a dar à anca? Já por lá andámos. Como o forte de Peniche a virar hotel e ouras coisas assim.

Isto não acaba, é feitio de actualidades, fruto de licenciaturas apressadas — falsas muitas — e de carreiras rápidas em partidos, corredores para uns tantos ambidestros, coisa distinta de identidade como energia propulsiva, antes mistura de arcaísmos mais modernices em papas kitch, longe da poesia culta de Camões ou da visão, dizem erasmita, de Vicente, dos poemas vitalistas de Herberto Hélder, da complexidade existencial de Pessoa, fragmentos de identidade que, estilhaçada, busca sempre ser uma inteireza virtualizada no que virá, parte nossa, herança de porvir.

Imediatamente antes era o orçamento, os zero vírgula dois reais, mais uns pós, e os um por cento míticos, Índia longínqua que já todos net-nadam no mar confuso das ideologias em calda aburguesada, mais sindicalista ou mais corporativa.

Essa, a do orçamento, é uma primeira questão. A segunda o modo como o debate é ao lado. Uma terceira é o não debate da problemática de José Gil, a da inscrição, mãe de todas as questões. A quarta, que deveria ser a primeira, seria um programa, uma política, um programa público, de cultura serviço público que entrasse em contradição útil com a “comercialização de todas as esferas do espírito” que o mercado impõe — o ministro da Cultura tem um poema interessante sobre mercados.

O que deve fazer o Estado? Comecemos por aqui. O Estado deve enraizar a democracia, não é um gestor de fundos, é o construtor primeiro do país, de outro país — com o interior de pantanas, isso é mais claro. E qual? Temos de dizer de onde vimos, de 48 anos de ditadura que não se apagaram, do fim do Império, das sangrias das emigrações, de uma integração europeia que trouxe dívida e défice e muito dinheiro para certas “elites” pós-Abril e pouco, mas algum, para outras “elites” (elites!?), trouxe uma aceleração da nossa história em direcção ao consumo, impôs uma modernidade contra formas de identidade radicadas em actividades da economia. Éramos pescadores e agricultores e de repente deixámos de ser. Agora temos o Alqueva, uma agricultura hipermoderna. Temos? Ainda recentemente o António Guerreiro falava aqui do olival de cultura intensiva e do modo como era destrutivo das potencialidades da terra, produtivo no curto prazo mas devastador.

Qual a questão central? A do direito de cidade das expressões artísticas, nomeadamente das actividades profissionais culturais “do sector público” (é aí que a democracia ganha forma mais explicitamente orgânica) e “assumidamente serviço público artístico sem finalidades lucrativas”, com finalidades sociais formativas e inclusivas que, a par da educação, sejam o estímulo orgânico — o alimento vindo de baixo — a uma qualificação das práticas profissionais e cívicas dos portugueses em geral, enquanto país que deveria ordenar-se como autoconstrução, diariamente. Não, não se trata de nada excepcional, de visibilidade espectacular, trata-se da tal inscrição. Não só do que se faz com uma escala de relevância social pré determinada que é necessário reconhecer como necessária — um Centro Dramático não é uma companhia de dois, nem um vão de escada é serviço público digno, podendo ser, como dizem, um site-específico — mas mesmo do que não existe — e há muita coisa que não temos na criação e vida diversa das práticas culturais Europa fora — e tem de se inventar como emancipação, saída deste atavismo trágico que nos tem sempre em desacerto e tragédia — nos incêndios, nas estradas, no insucesso escolar, no domínio pobre da desprezada língua, no cinema e teatro pobres, ricos de invenção, no interior abandonado, nas metrópoles a abarrotar, nos transportes a abarrotar, etc...

O que temos espalhado pelo país como vida cultural — há excepções, as filarmónicas e os teatros, não os edifícios mas as estruturas de criação — são formas de animação sócio-pseudo-artísticas que entretêm mas não alteram nada, caridade institucionalizada, falta de qualidade assumida regra. Basta conhecer os nossos lares de velhos, por exemplo, e muitas creches. E muitas das nossas escolas, outras serão excelentes, também há — o que não tem nada com rankings. Não há modo de fazer que não seja fazer in loco, mexer nas coisas lá onde as coisas se passam — isto não vai com decisões baseadas em raciocínios médios, mediocracia, que é o que temos e pode dizer duas coisas, mas essencialmente mediania, aurea mediocritas.

As questões são da obsessão de ocupação total do tempo, de o converter em tempo útil de entretenimento, no tal passatempo que o Sena dizia ser a coisa mais estúpida que existe, mas não da invenção do que se possa criar num “tempo inútil”. O que há a fazer? Pois, é não só fazer voar as vacas, mas respirarmos um outro ar ambiente. No meio desta poluição mediática constante e das animações do contraditório opinativo visibilizado à exaustão, o céu de chumbo que se cria com as explosões eléctricas do costume, é um território improdutivo, forma de bloqueio, de país que se cria a si mesmo um muro intransponível com o futuro do outro lado, sem corpo que o materialize em outra realidade mais livre e emancipada, rica do que somos, mais que de fado, futebol e Fátima. E o futuro não é o ajuste orçamental, não tenham ilusões. A democracia é vida!

Não, isto do Panteão não ajuda, mesmo na Ajuda. Somos peritos em desassunto. Problema mesmo é a burocracia electrónica que exclui pela complicação e que é unilateral, estúpida inteligência artificial, pois os tais softwares mandam as contas mandar no resto, nas artes, na autonomia do artístico agora subjugada sempre, e apenas, a trela contabilística. A visão contabilística, derivada da política financeira todo-o-terreno, sufoca pelo lado do orçamento o que deveriam ser, em perspectiva prospectiva, novas formas de sociabilidade a criar pelas artes. E não estou a dizer uma blague. Como querem reerguer o interior ardido? Para renascer das cinzas só mesmo com um intenso e profundo programa cultural, os abraços não pegam de estaca, não dão fruto, mas a criação sim, traz nova vida, novas formas de vida ao que, de há muito tempo, são modos de solidão compartilhada na espera da morte.

A questão do orçamento? É um instrumento, depende do programa — muito mais deveria orçamentar-se, mais que um por cento, basta olhar o nosso atraso! Para isso tem de haver país em projecto do Estado e da governação. O programa é do Estado e das instituições de acção artística e cultural, dos portugueses que querem um país emancipado da precariedade e da tragédia constante por razões de malformação organizativa herdada territorialmente e de incompetências várias — pobre do país que precisa de heróis —, as da propriedade e as dos atavismos, como as da corrupção, pequena e grande, e as dos amiguismos, partidários e cacicados. E não podemos viver sempre na sombra ofuscante da banca, dos poderes que não são escrutinados, nesta coisa de viver de joelhos permanentemente, de mão estendida e no “respeitinho é que é preciso” para os de lá de fora, para estes, lá fora, dizerem de modo paternalista que somos bons a sair da miséria e que um dia seremos como eles, mais que lixo.

Ó Portugal se fosses só três sílabas de plástico, que era mais barato!

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