Este homem encantador

Não é “this charming film”, mas vê-se com um interesse que fatalmente está ligado ao interesse que o espectador tiver pela mitologia morrisseyana.

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Os anos em que o futuro cantor dos Smiths, pose de Oscar Wilde reprimido, passava os dias a arrastar-se por empregos deprimentes
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“I was looking for a job and then I found a job, and heaven knows I’m miserable now”, cantava Morrissey no tempo dos Smiths, e England Is Mine é, a uns 80%, como que uma ilustração deste e doutros versos dessa canção, narrando os anos em que o futuro cantor, com pose de Oscar Wilde incógnito e reprimido, passava os dias a arrastar-se por empregos deprimentes, nomeadamente na repartição de finanças dum bairro algures em Manchester. Da “girlfriend in a coma” às “cemetery gates”, o conhecedor dos Smiths encontrará muitas outras referências e associações polvilhadas pelo filme de Mark Gill, não necessariamente porque este faça questão de distribuir piscadelas de olho, mas porque a escrita de Morrissey é eminentemente composta por fragmentos autobiográficos mais ou menos encapotados. E aqui, de cada vez que o espectador se cruza com um destes reflexos da lírica morrisseyana, a conclusão é imediata: England is Mine, contando de A a Z uma história que o próprio Morrissey contou ou foi contando de forma muito mais elíptica e labiríntica, está a milhas daquela capacidade de sugestão e de transfiguração (o violento enfado do quotidiano, coberto, e quase redimido, por camadas de um romantismo mórbido frequentemente auto-paródico) exibida por qualquer canção dos Smiths.

Apostando essencialmente nessa transposição do imaginário da juventude de Morrissey, England is Mine nunca é capaz de ultrapassar uma conformada pobreza ilustrativa, às vezes próxima de um registo anedótico (como em quase todas as cenas na repartição de finanças, que podiam vir da célebre série de Ricky Gervais, The Office). Mas não é que o filme não tenha algumas virtudes, alguns toques bem pensados e bem conseguidos, que apenas fazem lamentar ainda mais a oportunidade perdida: o momento da “transformação” de Morrissey em Morrissey (quando o actor que o interpreta, Jack Lowden, está de costas, deitado e deprimido, e um plano da sua nuca deixa adivinhar que, do outro lado, já apareceu a poupa); a utilização da música, que deixa de fora o repertório dos Smiths para se concentrar nas preferências de Morrissey, dos Roxy Music a Françoise Hardy, e por norma é sempre “diegética” (dada a partir de concertos ou discos que as personagens ouvem); a descrição quase “museológica” de uma adolescência introvertida, com foco naquele que é o espaço central do filme, o quarto do jovem Morrissey, o sítio — “in my room” — onde ele se podia encontrar com Brian Wilson ou Scott Walker. Não chega para lhe chamarmos “this charming film”, é o bastante para que se veja com um interesse que fatalmente está intrinsecamente ligado ao interesse que o espectador tiver pela mitologia morrisseyana.

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