À sombra da descrença

É muito doloroso perder um herói. Rejeitá-lo é ainda pior. Quando nos deparamos com um cenário no qual as figuras reverenciadas passam a ser pintadas de negro, tendemos a engendrar justificações para a desgraça destes anjos caídos

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Felix Mooneram/Unsplash

Quanto ao fenómeno de deferência para com determinados artistas (recentemente) relacionados com escândalos sexuais: preferir ignorar o mal é compactuar com ele.

Durante o último mês, vários artistas do cenário hollywoodiano foram mencionados em alegações de crimes de cariz sexual. Harvey Weinstein lidera a marcha forçada da vergonha e desde a sua estreia, todos os dias há um novo marchante. Não parece justo que subscrevamos alegações como sentenças de morte. Fala-se aqui apenas, note-se, de alegações que foram confirmadas e confessadas pelos perpetradores. Nada mais, nada menos. Deixemos a caça às bruxas para quem banalizou o imoral e, hoje, carece de redenção.

É muito doloroso perder um herói. Rejeitá-lo é ainda pior. Quando nos deparamos com um cenário no qual as figuras reverenciadas passam a ser pintadas de negro, tendemos a engendrar justificações para a desgraça destes anjos caídos. Separar a arte do artista é, na sua essencialidade, um argumento pusilânime. Nesta situação — que envolve personalidades com exposição pública, de uma amplitude indiscritível e com uma obra que influencia o percurso de inúmeros artistas — é um discurso discutível.

Até um certo ponto, a vida pessoal — incluiremos aqui o universo amoroso, familiar e sexual —, as opiniões e actividades políticas não nos dizem respeito. Podem até ser informações irrelevantes para a apreciação da obra. Mas isto muda quando as próprias obras são um reflexo da imoralidade e insensibilidade ética do artista. Assumir que existe sempre uma linha clara entre o perfil psicológico, moral, ético e estético do artista e o seu corpo de trabalho é uma falácia.

Indultar a obra de um criminoso sexual é contribuir, aceder e celebrar a forma como esse criminoso vive a sua vida e a reflecte na sua arte. Dar carta branca a estes artistas, independentemente do mal que tenham feito, com a justificação de serem brilhantes, é errado e irresponsável. Há muitos artistas, muitos deles brilhantes. Mas só alguns cruzaram essa linha de fogo para o lado do indecente, criminoso e humilhante. Cabe à indústria e à imprensa seleccionar os génios que servem como modelo. A nós também.

Um indivíduo que acredita na impunidade de crimes sexuais só o faz porque se esconde atrás de uma cortina de fama e credibilidade – artística ou política - que o público, a indústria e a imprensa lhes atribuiu. Se um artista, deliberadamente, provocou o mal de um ou vários indivíduos não merece qualquer tipo de apoio ou crédito.

Será sempre uma opção pessoal o facto de continuarmos a idolatrar a obra destes indivíduos. Mas a indústria e a imprensa têm um papel crucial na responsabilização e consciencialização deste tipo de crimes que ocorrem à porta fechada. Retirar credibilidade e poder a estas figuras dominantes abre o precedente para que o lixo que está debaixo do tapete seja varrido. Se, até agora, estes crimes não vieram à tona devido ao medo de represálias, descrenças e humilhações públicas, este é o momento em que as dinâmicas podem ser alteradas. A inconsciência da pena e a falta de remorsos levou a actos egoístas, vazios de substrato e sem remorso nas entrelinhas. Estes não podem ser absolvidos pelos holofotes.

É doloroso rejeitar heróis. Delineia-se um cenário no qual eles se extinguem com muita rapidez e facilidade. Cabe a cada um de nós decidir o que fazer com a desgraça de um ídolo e o amor à sua obra. Mas é responsabilidade da indústria e da imprensa proibir e extinguir qualquer acto de celebração ou homenagem ao indivíduo. Enquanto continuarmos a celebrar a pessoa atrás da obra independentemente da maldade com que se esta se define, haverá sempre aqueles que se vão calar à sombra da descrença.

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