Zentropa, produtora de Lars von Trier, sob investigação por má conduta sexual

Nove ex-funcionárias fazem denúncias ao jornal dinamarquês Politiken — que nunca mencionam o realizador, mas sim o produtor Peter Aalbæk Jensen. Nos últimos dias, da Suécia à jovem e velha Hollywood, mais acusações se somaram.

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Miguel Manso

A Autoridade para as Condições de Trabalho está a investigar a Zentropa, a maior e mais importante produtora de cinema dinamarquesa, na sequência de denúncias sobre assédio e má conduta sexual por parte de nove antigas funcionárias. A produtora foi fundada por Lars von Trier, nunca mencionado pelas queixosas, e por Peter Aalbæk Jensen, esse sim visado por apalpões, jogos de teor sexual e outros comportamentos que fariam “parte da cultura” da empresa, diz a produtora Foldager Sorensen. Entretanto, na Suécia, cerca de 700 actrizes – entre as quais Alicia Vikander, publicaram entretanto um manifesto em que avisam: “Já não ficaremos em silêncio”.

A investigação do diário dinamarquês Politiken foi publicada sexta-feira e nela nove antigas funcionárias da Zentropa falam sobre o ambiente no estúdio, descrevendo um ambiente que, no caso de algumas delas, as afastou por completo do sector por falta de vontade de conviver com tal cultura. Peter Aalbæk Jensen, que fundou a Zentropa com Von Trier em 1992, é o principal visado pelo trabalho e pelas entrevistadas, que descrevem como eram beliscadas ou apalpadas no peito repetidamente, e até açoitadas. “Penso que toda a gente que trabalhou na Zentropa foi exposta ou testemunhou certas coisas. Tanto actos de carga sexual quanto bullying ou ‘provocações’. Tudo isto era uma parte enraizada da cultura”, diz Meta Louise Foldager Sørensen, que trabalhou como produtora na Zentropa entre 2010 e 2016, ao Politiken.

“Vi mulheres serem humilhadas”, explica a jornalista e escritora Anna Mette Lundofte, que assinou mesmo o livro Zentropia (2013) depois de ter passado três anos na empresa. “Segundo a propaganda da Zentropa, eu faria parte de uma ‘cultura laboral alternativa’, mas na realidade encontrei uma estrutura de poder antiquada e patriarcal.” Nela, dizem as auscultadas pelo diário dinamarquês, as estagiárias, mais jovens, eram chamadas para tarefas pouco comuns, entre as quais a compra de pinças para mamilos; também decorreriam festas de Natal da empresa em que os jogos concebidos por Peter Aalbæk Jensen resultariam em “vários actos sexualmente degradantes em palco”.

Na presença de outros players da indústria, esses jogos recairiam sobre as funcionárias do sexo feminino, que tirariam brinquedos sexuais de um saco para depois o sócio-fundador imaginar que actos cometeriam com eles; ou então, receberiam prémios, alega o Politiken, num concurso sobre quem se despia mais depressa ou quem teria os pelos públicos mais longos. Noutros ambientes, as entrevistadas relatam castigos em que empregadas do sexo feminino tinham de se dobrar para serem açoitadas.

Em resposta às alegações, Peter Aalbæk Jensen negou que exista tal ambiente de assédio na empresa. E frisou: “Não tenho qualquer interesse em submissão e degradação. Estou interessado em testar limites, especialmente onde está a linha vermelha”. Mas, disse também, citado pela imprensa dinamarquesa e pelo diário britânico The Guardian, que apesar de não se lembrar dos alegados incidentes, eles “provavelmente aconteceram”.

“Muitas vezes houve em que fui excessivo ou fui longe demais. E assumo-o inteiramente. Mas a questão é se se é um líder adorado ou não. E eu sou um líder adorado”, disse ainda Peter Aalbæk Jensen. O fundador da Zentropa, que produziu ao longo dos anos quase todos os filmes de Lars von Trier e se tornou, dado o seu volume de produção, na mais importante produtora escandinava, já só detém 25% da empresa. E abandonou há mais de um ano cargos de direcção. Foi na Zentropa que se produziram os filmes do movimento Dogme 95, que incluiu  A Festa ou Os Idiotas. Meta Louise Foldager Sørensen, por exemplo, produziu Antichrist e Melancholia, de Lars von Trier.

O actual presidente da Zentropa, Anders Kjaerhauge, disse não reconhecer na reportagem o ambiente da produtora que conhece. Mas acrescentou, num email citado pelo jornal: “Não há dúvidas que não aceitamos comportamento ofensivo, e lamento ler a descrição do Politiken do que algumas mulheres terão experienciado”. Esta segunda-feira, a gestão da Zentropa enviou um comunicado, publicado pela revista Screen Daily, em que detalha que já reuniu com Peter Aalbæk Jensen sobre o que desejam que seja o “ambiente de trabalho e as condições sociais” na produtora. “Chegámos a um acordo e a administração emitirá um conjunto de regras” para enquadrar o ambiente laboral daqui em diante. “Todos os funcionários estão sujeitos a estas regras.”

“Não fará parte da cultura da Zentropa dar ou receber uma palmada nem como recompensa nem como castigo, independentemente se todas as partes envolvidas experienciam esses actos como divertidos. A cultura empresarial na Zentropa continuará a ser colorida e divertida, mas não queremos violar os direitos de ninguém nem insultar ninguém.” Uma das ex-produtoras que fala ao Politiken lamentava já, por seu turno: “Gostava de ter imposto mais limites e ter dito: não, isto não está certo. Não, não é ok pedir a jovens raparigas que sirvam num fato de coelho, não é ok pedir a pessoas que tirem as roupas e saltem para a piscina, não, não quero ver o meu patrão a abanar o pénis numa reunião”, disse ao jornal Stine Meldgaard.

O porta-voz da Autoridade para as Condições de Trabalho, Lars Toft Pedersen, disse, num comunicado enviado por email e citado pelo Deadline, que no início desta semana iriam começar a avaliar o assunto. “A Autoridade para as Condições de Trabalho leva acusações de bullying e assédio sexual muito a sério.” Dias depois da eclosão do escândalo Weinstein, a cantora Bjork publicou nas redes sociais um texto em que falava, indirectamente, de Lars von Trier e dizia que o ambiente na rodagem de Dancer in the Dark  diminuía sexualmente as actrizes. Von Trier disse que "não era o caso" da rodagem em causa e Peter Aalbæk Jensen acrescentara: "A mulher era mais forte do que Lars von Trier e eu e a nossa empresa juntos".

Entretanto, e à imagem do que artistas plásticas, curadoras ou directoras de museus fizeram há um par de semanas, também as actrizes suecas se uniram numa carta aberta em que prometem quebrar com a “cultura de silêncio” e torno do assédio no seu trabalho. Publicada no diário Svenska Dagbladet, surge na esteira da campanha online MeToo, criada nas redes sociais na sequência de várias investigações e subsequentes denúncias públicas em torno de casos sistémicos de assédio sexual e outros crimes ou má conduta de teor sexual sobre mulheres e homens no sector do cinema e televisão.  

De Sofia Helin, da série A Ponte, até Alicia Vikander, passando pela directora do Instituto Sueco do Cinema ou a directora da Ópera Real Sueca, falam de abusos verbais, físicos e mesmo violações, envolvendo instituições onde essa “cultura de silêncio” terá servido para encobrir casos como no Teatro Real (Dramaten). A ministra da Cultura chamou os responsáveis dos teatros nacionais para discutir o tema.  

Nos últimos dias, o mais sonante nome a ser alvo de uma investigação, desta feita do New York Times, que ouviu cinco mulheres que se queixavam, foi o do comediante Louis CK, que admitiu que “são verdade” as histórias sobre o seu exibicionismo e masturbação perante colegas do sexo feminino. Noutros casos, surgidos através das redes sociais, em testemunhos singulares ou textos na primeira pessoa na imprensa, o produtor executivo das séries The FlashSupergirl ou Arrow, Andrew Kreisberg, foi suspenso pela Warner Brothers Television após várias queixas de assédio sexual. O actor Ed Westwick (Gossip Girl) foi acusado por duas actrizes de violação e a BBC já retirou a sua nova série, Ordeal by Innocence, da grelha de Natal até serem esclarecidos os factos – o actor nega ter cometido tais actos. 

Sobre actos alegadamente cometidos nos anos 1980, os veteranos Richard Dreyfuss e George Takei foram acusados de, respectivamente, assédio sexual por uma antiga colega — com Dreyfuss a pedir desculpas por uma situação que disse não compreender na altura —, e de agressão sexual a um modelo, com Takei a negar que tal tenha acontecido.

Também a antiga argumentista da série Mad Men Kater Gordon disse ao site The Information que, após uma noite longa de trabalho, o autor da série, Matthew Weiner, lhe disse que ela já lhe devia a oportunidade de a ver nua; um ano depois, foi dispensada da série. Weiner diz não se lembrar de tal coisa. Por fim, e num texto na primeira pessoa, o actor Anthony Edwards (Top Gun, Serviço de Urgência) acusa o seu mentor, o produtor e argumentista Gary Godard, de o ter molestado enquanto criança e de ter violado o seu melhor amigo. “Isto durou anos”, escreveu no texto. Godard negou “inequivocamente” as alegações de Edwards. 

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