Amar como Morrissey amou

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Lawrence Watson

13 de Julho de 1985: lembro-me da data em que os ouvi pela primeira vez, na televisão, duas semanas antes de fazer 14 anos, porque esse foi o dia do Live Aid. A transmissão sofreu várias interrupções e, numa delas, alguém teve a feliz ideia de incluir uma actuação em estúdio de What difference does it make? Oferecendo o seu perfil à câmara, Morrissey exibia um caso evidente de prognatismo maxilar; tinha um penteado tão fora de moda como o dos amigos mais velhos do meu pai; vestia uma blusa semelhante às da minha avó; usava uns óculos de massa iguais aos do meu falecido avô; e trazia no bolso de trás das Levi’s um ramo de gladíolos, flores que só tinha visto em campas de cemitérios.

Três minutos depois de ouvir aquele cantor que parecia gozar com o facto de não saber cantar - no que me pareceu a única maneira de cantar – e que parecia gozar com o facto de não saber dançar - no que me pareceu a única maneira de dançar – as três gerações de músicos que se sucederam nos palcos de Wembley e do estádio John F. Kennedy pareciam fantoches, pareciam fantasmas. Toda aquela gente e a intenção que as reunira, mais o optimismo serôdio do thatcherismo, do reaganismo, e do cavaquismo que estava para vir, revelava-se subitamente postiça, ingénua, obscena. O primeiro e último verso da canção, “all men have secrets and here is mine” e “your prejudice won’t keep you warm tonight”, explodiram com o aparato filantrópico pós-colonial.

Nesse 13 de Julho, eu estava no Ribatejo. Os meus pais tinham ido visitar a família ao Canadá, e eu passei o Verão em Alcanena, com uns primos que tinham um modo de vida que hoje seria considerado um exemplo de autossustentabilidade: viviam numa quinta com uma horta, árvores de fruto, capoeiras, uma fábrica de curtumes e, no limite do terreno, um chiqueiro com porcos. As actividades na quinta absorviam-nos o dia-a-dia. Episodicamente fazíamos corridas de motorizada e mergulhos numa represa.

Engordei cinco quilos e os meus primos estavam eufóricos com a ideia de me devolverem, qual porco premiado, à progenitura. Na última semana, fizemos um passeio a S. Martinho do Porto numa carrinha de caixa aberta e teimei em viajar na parte de trás, a apanhar com o frio da madrugada e do anoitecer. No dia seguinte acordei com febre. Passei os últimos dias de cama e sem comer. Quando os meus pais me foram buscar, eu estava ainda mais magro e macilento de quando eles me viram pela última vez.

Foi nessa casa de Alcanena que assisti à matança do porco, cujos urros de pavor reentraram pela gravação de Meat is murder, acompanhados do odor do sangue coagulado, cortado aos cubos e cozido com batatas. O resto da minha adolescência foi uma dieta restrita e fanatizada, a respigar vestígios da fé, ou da febre. Atravessava os Baldios de Benfica para ir comprar os discos dos Smiths nos armazéns da Transmédia e folheava os jornais e revistas em busca de uma nota, de uma fotografia, de mais um vestígio. Encontrava nas canções o efeito de refracção da minha recusa perante o mundo e, nas citações a Wilde ou Delaney, ou na iconografia pós-Segunda Guerra das capas, pressentia o mesmo refúgio aos anos 80 que os cristãos teriam encontrado nos textos da Bíblia durante o Império Romano.

Antes de fazer 18 anos, enviei uma mensagem para a secção de Pregões & Declarações do Blitz, a pedir informações e materiais dos Smiths que na altura não se encontravam com facilidade. Entretanto, descobri na loja Bimotor dos Restauradores uma camisola estampada com a imagem do soldado na capa de Meat is murder. No primeiro dia em que a usei, um antigo colega de escola encontrou-me na Av. dos Bons Amigos, no Cacém. Em vez de me apertar a mão, apertou-me o pescoço: “Nunca mais voltes a ligar-me lá para casa”. Andavam a fazer-lhe telefonemas racistas e julgava que era eu. O episódio marcou-me tanto que passei a ter sonhos com ele. Três décadas depois, ainda fazia alusão a esse encontro em dois solos meus: na última cena de Av. dos Bons Amigos e no início de Trabalho precário.

No dia seguinte ao episódio na Av. dos Bons Amigos, adoeci com uma inflamação no ombro, que evoluiu até uma septicemia. Durante o mês que estive internado em S. José, a minha mensagem foi publicada no Blitz e a minha mãe recebeu dezenas e dezenas de telefonemas de fãs, para falarem comigo. Nunca falei com nenhum. Aliás, minto. Quando saí do hospital, recebi um último telefonema. Era um rapaz que não tinha nada do que eu pedia, era só para falar com alguém que gostava do mesmo. Nunca nos encontrámos. Poucos meses depois os anos 80 acabaram e eu saí da bolha para descobrir o resto mundo.

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