Uma contradição insanável

Uma coisa é a verdade da convicção, outra são os factos duros averiguados pela história.

Quarta-feira à noite, no Coliseu dos Recreios de Lisboa, o PCP celebrou os cem anos da “Revolução de Outubro” com um comício marcante pela importância do discurso do secretário-geral comunista. Jerónimo de Sousa fez a glorificação da “Revolução de Outubro” e do regime soviético e reafirmou-os enquanto modelo a seguir. “A Revolução de Outubro está aí como experiência concreta, como fonte de inspiração, com os seus valores e ideais afirmando que outro mundo é possível”, garantiu o líder do PCP, considerando que o facto de ter fracassado “um modelo historicamente configurado de construção do socialismo” não “apaga a enriquecedora experiência dessa primeira Revolução Socialista vitoriosa e a demonstração prática da superioridade da nova sociedade” construída na URSS. Para assegurar: “Assinalamos e saudamos nesse inaugural acto libertador o início de uma nova época histórica que permanece aberta no horizonte da luta dos trabalhadores e dos povos — a época da passagem do capitalismo ao socialismo — e nele a materialização de um milenar sonho de emancipação e de libertação de gerações de explorados e oprimidos.”

Por muito apelativa que tenha sido ou seja ainda hoje a utopia comunista, há uma realidade que não pode ser esquecida, ignorada ou desmentida: a “Revolução de Outubro” nada teve de democrático. Bem podem bramar em uníssono Jerónimo de Sousa e o PCP que a ideia de que “a natureza do projecto comunista é intrinsecamente perverso e antidemocrático” é fruto das “mais insidiosas e odiosas campanhas difamatórias” produzidas pelos “centros ideológicos e doutrinários da grande burguesia internacional”. Uma coisa é a verdade da convicção, outra são os factos duros averiguados pela história. E o que a história mostra sobre a construção do regime soviético não é bonito. É mesmo muito mau. Desde o primeiro momento, isto é, desde a mentira dita por Lenine ao Soviete de Petrogrado, ao início da tarde, de que o assalto ao Palácio de Inverno estava concretizado, quando ele só aconteceria horas depois.

A “Revolução de Outubro” iniciou-se com um golpe de Estado que aniquilou a tentativa de construção de uma democracia liberal e destruiu as instituições de poder então em afirmação desde a revolução de Fevereiro, a qual levou à abdicação de Nicolau II. O que aconteceu a partir de 25 de Outubro/7de Novembro de 1917 foi uma revolução feita de cima para baixo, através da tomada do poder pelos bolcheviques e da construção de um partido-Estado que implantou um regime ditatorial de terror bárbaro dirigido por Lenine e também, entre outros, por Trotsky — desistam de fantasias aqueles que gostam de glorificar Trotsky como o comunista bom, pois ele foi co-responsável pelo regime de terror bárbaro (e não só como responsável pelo Exército Vermelho). Um regime de terror bárbaro que levou à morte de vários milhões de pessoas só nos primeiros quatro anos de regime bolchevique (1917-1921), através da guerra civil, de assassinatos políticos, de fuzilamentos e da fome. Levado ao expoente máximo por Estaline, as suas características estruturais estavam lá desde o início. Não é um problema de “erros e desvios” ocorridos depois, como o PCP argumenta desde o fim da URSS. A matriz totalitária e de terror bárbaro é a mesma desde 1917.

E isto não é uma questão de batalhas de propaganda ou de guerra ideológica, é o que demonstram os factos históricos. Aliás, quem tenha dúvidas pode esclarecê-las, por exemplo, na obra de Orlando Figes A Tragédia de Um Povo, agora editada em português. Repito, não é propaganda, é história brilhantemente feita e escrita com acesso aos arquivos soviéticos abertos depois do golpe de Estado de 20 de Agosto 1991. Uma obra cuja leitura se recomenda a todos, nomeadamente aos militantes e dirigentes do PCP, incluindo Jerónimo de Sousa.

O discurso do Coliseu de Jerónimo de Sousa traz de novo à discussão uma questão antiga mas que se tornou mais pertinente nos últimos dois anos. E que se prende com uma insanável contradição: como pode o PCP afirmar-se defensor da democracia em Portugal hoje e glorificar o que foi a “Revolução de Outubro” e o regime soviético, assumindo-o como modelo para a humanidade?

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