Os anjos e os demónios que a Revolução de Outubro de 1917 solta no Portugal anacrónico de 2017

Quem são os partidos “comunistas” de hoje que podem reclamar-se uma espécie actual de descendentes da Internacional Comunista?

A espantosa discussão que temos sobre a Revolução de Outubro de 1917, ou para outros gostos da “Revolução Russa” ou da “Revolução Soviética”, mostra muitos traços do anacronismo da nossa vida pública, para além de uma instrumentalização paupérrima de meia dúzia de ideias sobre o que foi esse evento fundamental da história do século XX, e que, em bom rigor, dominou quase toda a história do século. Essa importância é real e não pode ser menosprezada. Mas isso é muito diferente de discutir se ela está “viva” ou “morta”, ou mesmo “morta” mas mal enterrada, ou “viva”, mas em estado zombie. O curioso da coisa é que o debate leva a conclusões muito mais semelhantes e próximas do que os seus protagonistas em aparente combate verbal querem admitir.

A demonização e a santificação deviam levar-nos à conclusão de que o evento permanece vivo. É isso que os que a santificam (o PCP, em primeiro e único lugar, o BE, o esquerdismo, menos) e os que a demonizam (a nossa alt-right que nos “observa”, e a opinião “central” cada vez mais à direita ou pressionada pela direita) acabam por concluir. Ambos acabam por ter um resultado muito semelhante: o legado da Revolução de Outubro está vivo, continua a ter sentido, justifica um combate ideológico e político, ou em sua defesa ou atacando-o. O mesmo já não se passa com a Revolução Francesa, ou a Comuna de Paris, ou, para sermos mais detalhados, com a Revolução Mexicana ou mesmo a Revolução Chinesa. Sobre essas ninguém quer saber.

Comecemos pelo remake de uma espécie de anticomunismo combatente que acha que o comunismo ressuscitou com a “geringonça”. Alguém que saiba minimamente de história pode achar que existem bolcheviques escondidos nas pregas da nossa sociedade, prontos a tentar assaltar o Palácio de Inverno? É capaz de haver, a julgar pelo modo como à direita se usam epítetos e imagens para colocar o pacífico António Costa, a expedita Catarina Martins e o bondoso Jerónimo de Sousa como partes de uma sequência em faixa ou bandeirinha que começa em Marx, Engels, Lenine, Estaline e Mao Zedong, e chamar ao actual Governo “comunista” e de “extrema-esquerda”. Há que apelar ao Senhor para pedir perdão por eles, porque não sabem o que dizem. Seria a mesma coisa que colocar Mussolini, Hitler, Le Pen, Portas e Passos Coelho numa bandeira amarela, uma patetice semelhante.

É exactamente por esta utilização aberrante da Revolução de Outubro que, à direita, as coisas são menos interessantes. O combate é contra um fantasma a que eles dão energia tratando-o como uma coisa viva. À esquerda agradece-se a tontice, porque isso serve para dar corpo ao fantasma e tornar aparentemente menos absurda a defesa das suas virtudes. Isso facilita ao PCP achar que a Revolução de Outubro também está viva, reclamando o legado de Outubro e de Lenine, o que serve para demarcar uma identidade que é também em grande parte mitológica. Fantasma e contrafantasma.

Quem são os partidos “comunistas” de hoje que podem reclamar-se uma espécie actual de descendentes da Internacional Comunista? O grego, o cipriota, o russo, o japonês, o brasileiro, os restos divididos do espanhol e do francês? Talvez. Mas a companhia tem de incluir o norte-coreano e, ironia das ironias, o PC chinês. Com todos eles o PCP tem relações amistosas com conteúdo político, mas bastava esta lista incluir o PC chinês para se perceber que se está num outro universo, a milhas da Revolução de Outubro. O mesmo se pode dizer em relação à monarquia norte-coreana.

Mas a enorme diferença do PCP do leninismo percebe-se logo que se começa a falar da substância das ideias de Lenine e aquilo que é o programa e a acção do PCP. É verdade que o modelo de partido é de origem leninista, o centralismo democrático, idem, a simbologia idem, com a foice e o martelo personificando a aliança operário-camponesa. É igualmente verdade que muita da linguagem do PCP remete para o vocabulário clássico dos partidos comunistas, agora transformado numa ainda mais rígida “língua de pau” pelo anacronismo evidente.

Considerar que há exploração, mesmo que há exploração implícita na relação capital-trabalho — a tese fundamental de Marx —, ou aceitar que há “luta de classes”, sejam quais forem as variantes de “classes” que se envolvem nessa luta, nada tem que ver com o comunismo, não definem “ser comunista” e muito menos “ser leninista”, seja em que versão for. Todas estas ideias são anteriores a Lenine e, em parte, mesmo a Marx, e fazem parte de um património que esteve na génese da crítica do socialismo nascente à insuficiência do liberalismo político para defrontar os problemas sociais ligados à pobreza, à exploração do trabalho, à desigualdade social. Elas são hoje partilhadas por todas as variantes de socialismo moderado, de social-democracia, estão presentes na doutrina social da Igreja, e não são alheias mesmo ao conteúdo de movimentos como a democracia-cristã originária. Não é por aqui que se é “comunista”, é-se comunista pela ideia de revolução, por uma certa ideia da revolução.

Aproximamo-nos da identidade do comunismo leninista quando retomamos as distinções que fez Rosa Luxemburgo entre o “movimento ser tudo” ou “o objectivo (o fim) ser tudo”, para definir o reformismo alemão e distingui-lo das novas ideias do nascente comunismo. E aqui, quer Rosa Luxemburgo, quer Lenine, o que diziam é que era impossível realizar-se a nova sociedade sem exploração a não ser por uma revolução, que tinha obrigatoriamente de ser violenta. Lenine traduziu essa distinção nas 21 “condições” para um partido ser considerado comunista e aderir à Internacional Comunista. Elas são o núcleo duro do leninismo, ou seja, do comunismo como a Revolução de Outubro o “criou”, e são identitárias para quem afirme ser seu herdeiro. Não há aqui questões de adaptação, de aggiornamento, de trazer para os dias de hoje este legado, porque ele não é “transportável” a não ser deturpando-o. A ideia central da necessidade de uma revolução violenta para implantar uma ditadura de classe não é a mesma coisa que falar de uma “democracia avançada”. Cunhal, que logo a seguir ao 25 de Abril retirou do programa do PCP a expressão “ditadura do proletariado”, explicou que o fazia apenas por razões cosméticas e não de fundo. Neste sentido, o PCP permaneceria leninista, se alguma coisa fizesse nesse sentido para lá da cosmética, mas, que se saiba, não faz.

Aliás, o PCP viola as regras básicas das “condições” leninistas para se ser considerado um partido comunista, a começar pela regra clara de que “os comunistas não podem confiar na legalidade burguesa e devem formar em toda parte um aparelho clandestino paralelo que possa, no momento decisivo, ajudar o partido a cumprir o seu dever perante a revolução”. Esta era a “lição” mais importante que os bolcheviques tiravam da Revolução de Outubro e da ruptura com o socialismo “reformista”. Havia toda uma outra série de normas, incluindo a obrigação de fazer propaganda comunista da revolução nos exércitos, a recusa de que alguma organização internacional (na época a Liga das Nações, hoje a ONU) tinha capacidade para impedir as “guerras imperialistas” sem derrube do sistema capitalista, e a necessidade de “depurações” permanentes dos efectivos dos partidos comunistas “para remover sistematicamente os inevitáveis elementos pequeno-burgueses”, que em nada correspondem ao que um partido como o PCP segue. Que eu saiba, o PCP não tem hoje nenhum “aparelho clandestino paralelo que possa, no momento decisivo, ajudar o partido a cumprir o seu dever perante a revolução”.

Se ultrapassarmos estes ajustes de contas históricos ou o uso utilitário a favor ou contra da Revolução de Outubro, a sua discussão informada tem todo o sentido. Só que sem voltarmos ao bolchevique de faca na boca, nem aos “amanhãs que cantam”, porque, como diziam os marxistas, “em última instância” isso prejudica a luta pela criação de uma sociedade mais justa, mais igual, onde haja menos exploração e onde “os de baixo” possam encontrar uma escada para se tornarem “os de cima”, sem haver “baixo”. É isso possível sem confrontos e sem violência? Duvido. Nunca aconteceu na história, mas isso está muito para além do que aconteceu num certo dia de Outubro, pelo velho calendário, agora Novembro de 1917, em que um destacamento militar dos sovietes controlados pelos bolcheviques ocupou a sede do governo, defendida por uma mistura de cossacos, cadetes e militares do sexo feminino, quase sem luta.

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