Índia: meninas noivas, mulheres à força

São crianças quando se casam e tornam-se mulheres cedo demais. Um terço de todas as meninas noivas que se encontram no mundo vive na Índia, um dos países onde o casamento infantil é mais comum. A fotógrafa Saumya Khandelwal desenvolveu o projecto Child Brides of Shravasti para não deixar esquecer este flagelo

Retrato da fotógrafa indiana Saumya Khandelwal, colaboradora da agência Reuters e Hindustan Times
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Retrato da fotógrafa indiana Saumya Khandelwal, colaboradora da agência Reuters e Hindustan Times
©Saumya Khandelwal
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©Saumya Khandelwal

A vida de Muskaan (nome fictício) foi igual à de muitas outras meninas do mundo até atingir os 14 anos, momento em que foi forçada a casar com Raju (nome fictício), um jovem estudante universitário de 21. Não escolheu a data, o local ou, mais importante, o noivo. Alheio ao seu desígnio, o rumo foi traçado: ela será esposa, mãe e dona de casa. “Ninguém escapa ao casamento, em Shravasti”, comentou a menor com a fotógrafa indiana Saumya Khandelwal, que, em entrevista ao P3, apresentou o projecto Child Brides of Shravasti. “O que há para sentir? Está tudo bem. (…) Tem de ser”, pragmatiza a menina. A irmã casou-se ainda mais cedo, aos dez anos. Hoje tem 22 e é mãe de dois filhos. [Ver fotogaleria]

O distrito de Shravasti, no estado de Uttar Pradesh, onde a fotógrafa concentrou o seu registo, é o mais fértil de toda a Índia. Os dados registados pela Comissão Nacional de Protecção dos Direitos das Crianças do governo indiano indicam que, no distrito, 25,5% das meninas entre os dez e os 17 anos já são casadas e que a maioria dá à luz nos dois anos seguintes. Segundo dados da UNICEF, a Índia é o sexto país do mundo onde o casamento infantil é mais comum; aqui vive um terço de todas as meninas noivas que se encontram no mundo.

“No dia do seu casamento, Muskaan estava feliz por poder usar um sari [traje tradicional indiano] e por receber a visita de todos os seus amigos", conta a fotógrafa. "Mantinha-se alheada das brigas entre as famílias, relacionadas com a quantia do seu dote, e entretida com os preparativos.” Mal conhece o noivo, mas isso não parece influenciar o estado de espírito. “Muskaan viu Raju poucas vezes, antes da cerimónia, quando visitava a irmã na casa dos sogros. Nessa altura não sabia que casaria com o irmão do cunhado.” Assim quiseram as famílias de ambos. Sem outra opção, os principais intervenientes acederam.

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A cerimónia decorreu em 2017, em Shravasti ©Saumya Khandelwal

 

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A gravidez durante o período da adolescência representa quase sempre um risco ©Saumya Khandelwal

A cerimónia decorreu em ambiente de festa. Findo o ritual, a menina noiva não mudou de imediato para casa dos sogros. Aguarda agora o gauna, o ritual de consumação da união, que ditará o momento em que Muskaan mudará de casa. Esse pode decorrer um mês após o casamento ou demorar anos até acontecer. “Muskaan não sente qualquer apreensão relativamente ao casamento. Ela anseia, até, pela sua consumação [o gauna]. Fala com carinho do marido, parece gostar dele. Fico contente por ela. Muitas raparigas que conheci pareciam não gostar dos seus maridos, mas não ter outra opção que não fosse casar com eles.”

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Muskaan* casou-se aos 14 anos com Raju*, um estudante universitário de 21 anos

 

O exemplo de Muskaan é uma excepção à regra. “Ela fala com o marido sempre que possível. Confidenciou-me que ambos consumiram um pacote de 1200 minutos de telefone no espaço de uma semana. Foi ele quem lhe deu um telemóvel, para que pudessem comunicar. Pediu-lhe também que não saísse de casa sozinha, o que Muskaan cumpre religiosamente.” Orgulhosamente, disse à fotógrafa que “agora é uma pessoa mais responsável” por já conseguir tomar conta de uma casa sozinha. Em muitos casos, sobretudo nas zonas mais rurais, os maridos trabalham nas cidades grandes e deixam as esposas para trás, a cuidar da casa e dos filhos. Por ora, é desse modo que Muskaan e Raju partilham as suas vidas.

 

Muskaan abandonou os estudos no oitavo ano, apesar de sempre ter sido boa aluna. “As raparigas desta zona da Índia sabem que eventualmente irão casar-se, por isso nem sequer pensam no que gostariam de fazer profissionalmente. Sabem que não é uma opção.” Mas as mais velhas, depois do casamento, acabam por mudar de opinião. “Falei com muitas mulheres [em Shravasti] que acham o casamento infantil pouco saudável. Elas sofreram as consequências na própria pele e referem sobretudo as complicações no parto. Se pudessem, protegeriam as filhas desta prática.” Por outro lado, à luz da cultura indiana, se não existisse o casamento infantil um problema ficaria sem solução “Os pais querem evitar que as meninas se envolvam com os homens da aldeia, depois de atingirem a puberdade. Isso seria uma desonra.” Deste modo, o casamento infantil parece ser apenas a ponta do icebergue de uma questão cultural de raízes muito mais profundas.

“Elas são as maiores prejudicadas”

A prática do matrimónio em que uma ou duas partes é menor de idade está proibida na Índia, depois da entrada em vigor, em 2006, da lei que proíbe o casamento infantil. No entanto, como os casos raramente são reportados, os organismos competentes não têm a possibilidade de agir.

 

“Raparigas e rapazes são afectados pelo matrimónio infantil, mas as raparigas são-no em muito maior número e com maior intensidade”, refere a UNICEF. Os rapazes casam, tendencialmente, mais tarde e sempre com raparigas mais novas. Este é um dos motivos por que a fotógrafa da Reuters se debruçou sobre a perspectiva feminina do problema. “Elas são as maiores prejudicadas nesta prática. Não só perdem a sua infância como enfrentam uma série de complicações de saúde resultantes do processo [tendo em conta que muitas engravidam pouco tempo depois]. Têm de abandonar as suas casas e de passar a viver com a família dos maridos, o que as obriga a um maior esforço de adaptação. É uma prática extremamente injusta sobretudo para as mulheres. Onde ela é praticada, não existe uma consciência do mal social que lhe é inerente.” 

O número de organizações não-governamentais a intervir nesta área é, segundo Saumya, manifestamente insuficiente. “Existe uma organização chamada DEHAT que tem feito um trabalho especialmente meritório e que tem sido capaz de erradicar o problema em algumas aldeias. Mas creio que é necessária uma intervenção massiva da sociedade civil e do próprio governo para alterar as mentalidades. Há demasiadas vidas em risco." O abandono escolar precoce, a violência doméstica e sexual, as complicações de saúde são as consequências mais nefandas deste costume ancestral. 

O projecto Child Brides of Shravasti foi o vencedor da Bolsa Instagram 2017, da Getty Images, e é apoiado pela Fundação Nacional da Índia. “Estas meninas são tão inocentes e afectuosas e recebem da sociedade o que de mais brutal esta tem para oferecer. Espero que este projecto faça com que as pessoas se interessem pelas suas histórias e se mobilizem em seu auxílio. Talvez menos meninas tenham de abdicar da sua educação e mais possam cultivar sonhos e realizá-los.”

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