"A noite de Lisboa é de exclusão social"

Jordi Nofre, investigador que estuda a noite lisboeta há oito anos, critica a inexistência de um plano estratégico para a vida nocturna, acusa a câmara de passividade perante os problemas, fala da discriminação racial em discotecas e propõe formação contínua para seguranças.

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O entrevistado pediu para não ser fotografado para não prejudicar estudos de campo na noite lisboeta Nuno Ferreira Santos

O LxNights, grupo de investigação académica sobre a noite de Lisboa e as transformações urbanas que ela provoca, existe há quatro anos. Em Abril, o grupo composto por investigadores da Universidade Nova e do ISCTE criou o Observatório do Lazer Nocturno em Lisboa, que ainda procura financiamento.

Jordi Nofre, o catalão que é o principal investigador do LxNights, explica como essa estrutura pode ajudar a mudar para melhor a vida nocturna na cidade. E propõe um plano de acção focado na saúde pública, na segurança, na mobilidade, na cultura e no combate à exclusão social e ao patriarcalismo.

Com que objectivos foi criado o Observatório?
Por um lado, monitorizar a noite através da recolha de informação quantitativa e qualitativa. Criar indicadores que possam ser utilizados para analisar a evolução da noite. Não só em relação ao consumo de álcool e drogas, mas também relativamente à habitabilidade dos bairros com forte presença de lazer nocturno. Ou em relação à coexistência de diferentes grupos sociais na noite, que às vezes pode acabar em episódios violentos. A monitorização destes indicadores permitiria fazer relatórios, trimestrais por exemplo, que seriam discutidos com todos os actores envolvidos na noite, que serviriam também para fazer propostas de novas políticas públicas para uma noite mais inclusiva, mais saudável e mais sustentável.

Esses indicadores não existem?
Não. Nós achamos que há essa necessidade. Temos vindo a trabalhar neste assunto nos últimos quatro anos, como grupo, alguns de nós há oito de forma individual. E temos identificado que há impactos negativos de âmbito social e espacial, de saúde pública, de governança. Não há um plano estratégico. Ou seja, a vida nocturna em Lisboa é um dos elementos centrais da estratégia de turismo da região, mas não há um plano. Se não há, como é que os agentes envolvidos podem avançar? Como é que pode ser criada uma mediação entre os actores se não há um regulamento definido? Portanto, criam-se situações a que nós chamamos “governança liminar”, em que cada um faz o que quer. Isto porque não há mediação, como por exemplo tem Berlim, Londres, Nova Iorque e muitas outras cidades.

Devia haver um vereador na câmara com este pelouro?
Tem de ser independente. Porque a câmara é um actor. Os actores têm de estar no mesmo plano horizontal, com uma pessoa na coordenação. A câmara é um actor fundamental na noite, assim como os clientes, os moradores, os proprietários de bares. Uma estrutura vertical, do nosso ponto de vista, não seria a melhor.

Teria de ser, portanto, uma pessoa ou um gabinete sem ligações à câmara?
Sim, a nossa proposta é que se crie uma Lisbon Nightlife Commission ou algo do género. Face ao contexto tão particular de Lisboa, sobretudo em relação à divisão administrativa, seria interessante ter essa comissão, mas também cada junta de freguesia, nomeadamente aquelas do centro, ter a sua própria comissão. Os problemas da noite do Cais do Sodré podem ser diferentes dos do Bairro Alto, podem ser diferentes dos de Alfama e até dos da nova zona de lazer nocturno que está a surgir na Graça, no Intendente, etc. Permitia mais agilidade, ganhar tempo de resposta. Na revisão do regulamento de horários de funcionamento dos estabelecimentos nocturnos [aprovada há um ano] está escrito, no ponto 3 do artigo 16, que “o conselho de acompanhamento da vida nocturna reúne ordinariamente uma vez por ano”. Uma vez por ano? Com os problemas que há? Os problemas que temos hoje precisam de mais agilidade.

Mas esse conselho existe?
Existe no papel. Precisamos que esteja operacional. Tem de haver uma decisão concreta: avançamos ou não avançamos? Implementamos o modelo europeu ou não? Ou escolhemos outro? Não estou a dizer que temos de ter o modelo de Berlim ou de Londres, mas tem de se fazer alguma coisa.

Sabe se esse conselho já reuniu?
Ninguém sabe.

Este debate sobre a vida nocturna está suficientemente alargado?
O debate existe, porque a areia desse debate é fornecida pela comunicação social. Para todos os efeitos, há pessoas que opinam, contrariam a opinião dos outros. Ou seja, há um debate. Mas esse debate tem ser mais focado para que tenha um resultado de reformulação das políticas públicas. Temos de direccionar toda essa energia para um benefício comum, novas políticas públicas que não fiquem só no papel. E isso passa pela abertura a um modelo de governança co-participativa. Isto quer dizer que a pessoa pode participar activamente no controlo e fiscalização das políticas implementadas. Daí que a nossa proposta de Nightlife Commission esteja estruturada para ela funcionasse como ponte entre comissões territoriais e a câmara. Há problemas muito particulares em Santa Maria Maior e na Misericórdia que não têm nada que ver com os que existem em Benfica, por exemplo.

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Bairro Alto Helder Olino

Num artigo que publicou recentemente, a propósito das mudanças no Bairro Alto, fala da “neoliberalização da cidade”. O que é que isto significa?
A questão da neoliberalização da vida nocturna em Lisboa faz parte de um debate ainda não resolvido e que é essencial. Por um lado, há o direito ao lazer. Por outro, há o direito ao descanso, que é reconhecido pela Constituição e por um conjunto de leis a nível nacional e local. São dois direitos que não colam um com o outro. Podiam colar, caso existisse uma política de conciliação e mediação. Assim, o direito ao descanso está num plano inferior ao do direito ao lazer. Mas que não é um verdadeiro direito ao lazer, mas sim a sua mercantilização. Todas as actividades de lazer nocturno estão monetizadas: tens de pagar. Não existe um plano de iniciativa pública que vise fornecer espaços de lazer aos seus cidadãos. Não existem espaços para fazer desporto à noite ou locais para concertos de músicos mais novos, por exemplo. Está tudo monetizado e, evidentemente, isso serve para fazer uma higienização social do espaço da cidade.

Para afastar um certo tipo de população?
Sim. E quando chegam pessoas dos subúrbios há tensões: nas portas de acesso aos locais, com a polícia. A noite de Lisboa é de exclusão social, quando poderia ser um espaço-tempo de inclusão.

Mas quando diz que a câmara não disponibiliza espaços, está a falar de quê exactamente? A câmara tem o cinema São Jorge, agora o Capitólio, tem teatros…
O facto de ter não quer dizer que os disponibilize. Podes ter os espaços, mas a existência desses espaços chega a quantas pessoas? Ou seja, porque é que a câmara prefere publicitar que a noite de Lisboa é a mais vibrante do mundo, através do site da Associação de Turismo de Lisboa, mas não diz que tem um cinema, que há uma tradição de ir ao cinema, ao teatro, à revista à portuguesa? É uma opção. É a escolha de um modelo que dá dinheiro à câmara, através dos impostos. A câmara fez a escolha de se juntar a um parceiro privado, como é a Associação de Turismo de Lisboa, e outros tipos de lazer nocturno, que não seriam tão mercantilizados, ficaram afastados da política pública, que está a favorecer um lobby privado. Não estou a dizer que sou contra o turismo, porque em Lisboa é a única coisa que existe. Ponto. Sem turismo, não há mais nada. É uma desgraça, mas é assim. As elites locais e nacionais demitiram-se de pensar um projecto para Lisboa no futuro.

Como é que, então, a noite se pode tornar um espaço de inclusão social?
Um exemplo: porque é que, hoje, em 2017, já perto de entrar em 2018, temos a vergonha da Rede da Madrugada da Carris? Que foi pensada há vinte anos. Porque é que o metro não abre 24 horas aos fins-de-semana como em muitas cidades europeias? Temos o mesmo modelo de há vinte anos, mas o contexto é muito diferente. As políticas públicas ainda hoje são pensadas para a cidade de dia. Os trabalhadores nocturnos e pessoas que estudam à noite, por exemplo, nunca tiveram os mesmos direitos que os cidadãos de dia. Se tu estás a promover uma cidade 24 horas aberta, tem de haver cidade 24 horas. Porque não funcionam os barcos para a Outra Banda? Somos uma cidade ou somos uma área metropolitana?

Parece-lhe uma boa ideia promover uma cidade que está aberta 24 horas por dia?
A cidade, na verdade, já está 24 horas aberta. Por isso façam o favor de fazer políticas para uma cidade 24 horas.

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Nuno Ferreira Santos

A higienização social de que fala também se processa assim, sem essas políticas?
Em Lisboa temos os dois modelos de higienização. O modelo de apropriação de um espaço que acontece por pessoal que tropeça naquele espaço. Há uma negociação entre grupos sociais que não é mediada pela câmara municipal nem por outros actores. Isso aconteceu no Bairro Alto, no Erasmus Corner, que antes era um sítio onde andavam skins e punks. O caso do Cais do Sodré é muito diferente. Há uma estratégia promovida pela câmara de higienizar o espaço em termos sociais. Promoveu a intervenção no espaço urbano, que foi a pintura de cor-de-rosa [da Rua Nova do Carvalho]. A rua tinha duas metades: para um lado e para o outro do arco da Rua do Alecrim. O pessoal que começou a frequentar uma parte, em 2012/2013, era muito diferente do pessoal do outro lado. Naquela esquina, ao pé do Viking, ainda estavam as prostitutas de sempre. Já não estão. Já só há duas. Foi um processo. Agora o que vende Lisboa como cidade de lazer nocturno já não é o Bairro Alto, é o Cais do Sodré. A pink street.

Mas, supostamente, a intenção era que os bares e discotecas passassem para o lado do rio.
Há duas opções. Tens um modelo de lazer nocturno, segregado da cidade, em que, na frente ribeirinha, crias uma espécie de “parque temático”. Isto é, um espaço orientado ao lazer, 24 horas: teatro ao ar livre, cinema ao ar livre, circo, actividades da indústria criativa e artística. Outro modelo é o lazer nocturno inserido no tecido urbano, que é o que temos hoje. O modelo “parque temático” tem problemas no controlo de massas, por exemplo, e este tem essencialmente o problema do convívio com os moradores. Há um terceiro caminho, que é a mistura dos dois. Ter a zona ribeirinha para um lazer de 24 horas, com discotecas grandes, cinemas, tudo, até desporto; e ter um lazer nos bairros históricos, mas reorientado para as indústrias criativas artísticas, para a gastronomia, etc. E com a proibição forte e efectiva de actividades como os pub crawl e as atitudes de hooligan nocturno: aqueles grupos que, não sei porquê, gritam como se estivessem numa claque de futebol. Esse é um comportamento que não pode acontecer na noite destes bairros históricos.

Estamos mais perto de que modelo?
Deste último. A câmara deu passos para este último modelo, com a liberalização de horários na zona ribeirinha. O que acontece é que vemos o regulamento dos horários para a vida nocturna inserida no tecido urbano, nos bairros históricos e ficamos: “Então os locais podem estar abertos até às 2h, às 3h, 4h?” A Constituição e todo o conjunto de leis nacionais e internacionais protegem o direito ao descanso. Eu não posso fazer barulho em casa a partir das dez, mas o clube ali do lado pode estar aberto até à uma ou duas? Como é que é isso? Há cidadãos de primeira e cidadãos de segunda?

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