Quem deixou os cuscos em Trás-os-Montes?

Começa o Inverno e é tempo de cogumelos e castanhas na Terra Fria transmontana. Uma viagem que nos levou à descoberta dos misteriosos cuscos – herança de mouros e judeus?

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“Isto é deitar água e depois, com as mãos, sempre a torcer”, diz dona Maria de Lurdes, enquanto demonstra, repetindo os gestos que se fazem nesta região de Trás-os-Montes há séculos e que quase estiveram em risco de se perder. Estamos aqui para ouvir a história dos cuscos transmontanos, esse produto praticamente desconhecido no resto do país e que nos liga ao Norte de África sem que tenhamos, para já, conseguido traçar a sua história completa ao longo do tempo.

Maria de Lurdes Diegues é da aldeia de Paçó, concelho de Vinhais, e há quinze anos que vende os cuscos na feira. Mas, nos últimos tempos, depois de esta tradição alimentar ter despertado a curiosidade de alguns investigadores, a procura é cada vez maior e ela não tem mãos a medir — literalmente, porque este é um trabalho de mãos, e, sobretudo de braços.

Debruçada sobre a masseira, deixa água morna com sal na farinha, delicadamente, usando uma vassoura feita de ervas selvagens — “chamam-lhe mata pulga, é da família do linho” — porque é esta a melhor forma de dosear a água, que, presa nos ramos fininhos da planta, cai “pinguinha a pinguinha”.

Antigamente eram duas ou três mulheres a fazer isto, agora Maria de Lurdes faz sozinha, usando primeiro uma mão e depois as duas para “torcer” a farinha com a água, sempre para o mesmo lado, se não, não resulta. Quando ela fica enrolada em pequenas bolinhas, é passada por um crivo ou peneira para ir ficando mais fina, depois vai descansar e secar ao sol — “assoalhar” — e, por fim, é cozida ao vapor. No final, depois de mais uma secagem, temos prontos os cuscos transmontanos.

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Maria de Lurdes Diegues a pôr os cuscos a "assoalhar"

Carolas com açúcar ou manteiga

Na véspera, tínhamos visitado dona Guilhermina, do Samil, às portas de Bragança. Também ela, no meio da apanha da castanha e dos muitos trabalhos no campo, faz cuscos. Estes são um bocadinho diferentes dos de Maria de Lurdes — finos e amarelos, aproximam-se mais do couscous magrebino que conhecemos.

Quem nos acompanha ao Samil é Patrícia Cordeiro, socióloga que está a trabalhar com o Município de Bragança para a inscrição dos cuscos no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial. “É muito curioso porque aqui a dona Guilhermina acrescenta um ovo à água para fazer os cuscos”, explica. “É o que lhes dá um tom mais amarelo, e não encontrei isto noutros lados.”

Patrícia tem andado a investigar os cuscos da zona de Bragança e a fazer o levantamento de todas as senhoras que ainda os fazem, espalhadas pelas várias aldeias. Interessou-se também pelas cuscuzeiras que encontrou em algumas casas. Dona Guilhermina tem uma antiga, de barro, com pequenos furinhos para a cozedura a vapor e, pegando nela, mostra-nos como se faz: é posta em cima da panela ou pote com a água a ferver e a junção entre as duas é vedada com uma pasta feita de farinha e água. Depois é só deixar cozer. “Estas cuscuzeiras em barro são típicas de Bragança, noutros sítios encontramos mais as de lata”, salienta Patrícia.

Dona Lurdes, no Paçó, já tem uma cuscuzeira moderna, que mandou vir de França, mas o processo é o mesmo. E, sublinha, é muito importante que os cuscos vão embrulhados num pano branco bem limpo. Quando estão cozidos retiram-se em bola, ainda quentes, e são chamados carolas — muita gente gosta de os comer logo ali, com açúcar, com manteiga ou sem nada, a saber a pão acabado de fazer.

É importante que o trigo usado para os cuscos seja o barbela, que se cultiva na região (embora cada vez menos, por ser mais difícil de trabalhar que outras variedades). Em Vinhais, explica-nos a engenheira Carla Alves, responsável pela Feira do Fumeiro e o seu trabalho de recuperação do porco bísaro e pelo Parque Biológico de Vinhais, e também interessada na questão dos cuscos, está-se a trabalhar para conseguir a certificação do produto como DOP (Denominação de Origem Protegida) e isso significa, entre outras coisas, garantir que o seu fabrico é feito mesmo com o trigo barbela. “Espero que dentro de dois anos tenhamos cuscos à venda nas lojas gourmet, com uma bonita imagem, e que isso ajude a fixar pessoas no território”, diz.

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Os cuscos

O regresso dos cuscos

No seu trabalho de investigação, Patrícia Cordeiro chegou a algumas das mais antigas receitas registadas de cuscos, como a do livro A Arte da Cozinha, de Domingos Rodrigues (1680). Numa das edições aparece “Cuscús [sic] como se faz”, muito semelhante à técnica ainda hoje usada, e que, curiosamente desaparece de edições posteriores, sendo a iguaria apresentada nos banquetes de Março e de Outubro (“dez pratinhos de cuscús ou letria”, para o final da refeição, porque os cuscos podem também ser doces, juntando-lhes açúcar e canela).

No Samil, dona Guilhermina recorda: “Com o meu pai vivo, comíamos muito cá em casa, como se fosse arroz.” Diz que a sua receita favorita é só com tomate, mas “se houver uma carne sobejada, pode-se juntar”. A alguns quilómetros dali, no Paçó, dona Lurdes tem memórias semelhantes, de, no mês de Março, toda a aldeia fazer os seus cuscos, que duravam para o ano inteiro. “Não havia arroz nem massa nem dinheiro para os comprar, as pessoas levavam o trigo ao moleiro, peneiravam e faziam os cuscos.”

Houve anos, contudo, em que estes pareciam condenados a perder-se. Muito trabalhosos, já poucas mulheres os faziam, mas quem imigrava gostava, nas férias, de recordar o sabor de umas carolas ou de um prato de cuscos. Foi o interesse do engenheiro agrónomo e profundo conhecedor da gastronomia portuguesa, em particular da de Trás-os-Montes António Manuel Monteiro, que, há cerca de uma década, fez voltar as atenções novamente para os cuscos.

No seu livro Comidas Conversadas, António Monteiro explica que o nome deste alimento vem do árabe al-kuskusú, proveniente da expressão kaskassa, que significa moer. O termo terá “surgido no português corrente no decorrer do século XV”, tendo perdido o “al”, e há indicações de que “este produto era correntio e popular no Portugal do século XV”.

Séculos passados, a sua memória perdurou apenas nas zonas de Bragança e Vinhais — onde, julga-se, terá chegado por via dos invasores magrebinos ou dos judeus sefarditas que aí permaneceram, mais tarde como cristãos novos —, e em alguns pontos da Madeira (há versões, com diferentes farinhas, um pouco por todo o mundo, nomeadamente no Brasil, Cabo Verde, Angola ou Moçambique). António Monteiro admite que “o seu quase desaparecimento, a partir dos séculos XVII e XVIII, se deva ao triunfo da batata e do milho das Américas”.

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Maria de Lurdes com os crivos que usa para peneirar os cuscos

Mas, graças à curiosidade deste e de outros investigadores, os cuscos fazem hoje um (ainda tímido) regresso, trabalhados por chefs da região ou de origem transmontana como Justa Nobre e José Cordeiro, em Lisboa. Já dona Lurdes, quase não chega para as encomendas — “De 9 de Agosto a 17 de Setembro deste ano, vendi 100 quilos” — e ainda não encontrou ajudante mais nova que queira aprender.

Os cogumelos

Esta é — ou melhor, devia ser — época de cogumelos. Mas este ano, com a falta de chuva, eles ainda não começaram a aparecer, lamenta Francisco Touças, que, juntamente com Mário Tavares, abriu em 2013 no centro de Bragança O Batoque, restaurante especializado em cogumelos. Os dois amigos frequentaram um curso de micologia e tiveram a ideia de abrir um espaço onde toda a carta fosse feita à base de cogumelos, trabalhados pelo cozinheiro da casa, o suíço Werner Ritter.

É isso que hoje encontramos no Batoque (que fica na Rua dos Batoques), embora, enquanto os selvagens não despontarem, seja preciso recorrer sobretudo aos cogumelos de cultivo. “Sempre se usaram cogumelos na alimentação da região”, diz Francisco, mas, “dependendo da variedade, é um produto caro”.

Para além da falta de chuva, o maior problema são os espanhóis que vêm apanhar os cogumelos em Portugal ou que os compram a locais, vendendo-os depois muito mais caros em Espanha. “Falta legislação”, sublinha Francisco.

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Francisco Touças e o cozinheiro suíço Werner Ritter n'O Batoque

Mas, mesmo enquanto os silvestres não surgem, os apreciadores de cogumelos podem sempre ir ao Batoque e começar por um paté e uns pickles de cogumelos, seguir com um creme sedoso ou um Portobello recheado com alheira, legumes e queijo, uma açorda ou um risotto de cogumelos ou até experimentar como fica uma francesinha com cogumelos.

As castanhas

Os castanheiros estão lindos, com os ramos pesados de ouriços, e por todo o lado há gente ocupada na apanha das castanhas, mas, tal como os cogumelos, este não é um ano famoso para elas. Estão mais pequenas, mais magras, e muitas secaram nos ouriços, porque “quando era preciso água para o aumento dos frutos, não houve”, lamenta a engenheira Carla Alves, enquanto conversamos no Parque Biológico de Vinhais. Há uma vespa que ataca os castanheiros, afectando muito a produção e que se junta a outra doença, a “tinta”.

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N'O Batoque todos os pratos levam cogumelos

Além disso, explica ainda Carla Alves, “a seca e o aquecimento climático também estão a afectar aqueles que até há pouco tempo eram locais de excelência para o castanheiro e que hoje não são, enquanto outras zonas, antes demasiado frias, actualmente já têm temperaturas boas para estas árvores”.

É desta região que vêm dois terços da castanha produzida em Portugal, mas é um comércio concentrado em duas ou três grandes empresas que correm as aldeias comprando a castanha directamente ao produtor (só Bragança produz anualmente entre 30 a 40 toneladas). A maior parte destina-se à exportação, embora exista também um relativamente pequeno mercado do fresco em Portugal, a que se soma a venda de castanha congelada ou embalada já cozida.

Mas, mesmo com todos os problemas, a Rural Castanea, a festa da castanha de Vinhais, acontece este fim-de-semana e, na semana passada, realizou-se a Norcaça, Norpesca e Norcastanha em Bragança, com os restaurantes locais a servirem pratos com castanhas e, entre outras actividades, o concurso de doces de castanha. Um dos doces já consagrados na região é o ouriço de castanha, criado pelo chef Eurico Castro, com massa filo a envolver a rica pasta de castanha.  

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Estamos na época das castanhas e os castanheiros estão carregados
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