Luís Filipe Rocha e os olhos de Mariazinha

No documentário Rosas de Ermera, os irmãos de Zeca Afonso contam a sua infância em Moçambique e Timor nos anos da Segunda Guerra Mundial. Memórias que o realizador de Cerromaior e Adeus, Pai filma como uma conversa à lareira.

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Mariazinha no regresso a Timor, para o filme de Luís Filipe Rocha,Mariazinha no regresso a Timor, para o filme de Luís Filipe Rocha dr,dr
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Pais e filhos: o juiz José Nepomuceno, a mulher e os três irmãos dr
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Mariazinha entre os dois irmãos, Zeca e João Afonso dos Santos dr
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Luís Filipe Rocha RG Rui Gaudencio

Não vale a pena ir a Rosas de Ermera à espera do José Afonso de Grândola, Vila Morena ou Venham Mais Cinco. Nas palavras do seu realizador, Luís Filipe Rocha (Cerromaior, Adeus Pai, Cinzento e Negro), Zeca Afonso é um “ausente presente” neste filme que se debruça sobre os anos de menino, pouco abordados, daquele que era então o filho do meio do juiz José Nepomuceno Afonso. Rosas de Ermera é a história da infância colonial dos três filhos do juiz durante o período da Segunda Guerra Mundial, centrado na experiência de Mariazinha, a mais nova, detida com os pais num campo de concentração japonês em Timor durante três anos.

“Este não é um filme sobre o Zeca”, explica Rocha, “mesmo que tenha havido uma altura em que pensei rechear o filme com mais presença dele. Mas, a certa altura, assumi claramente o protagonismo, e a memória, de quem cá está. E o Zeca é um ausente que está presente, no coração e na memória do João e da Mariazinha.”

As raízes destas Rosas de Ermera estão, ainda assim, naquela figura maior da música portuguesa, e num projecto de filme sobre o cantor em que Rocha trabalhou “com muita profundidade” durante longos anos, mas que, para seu grande desgosto, foi travado em 1984. A amizade com os irmãos do cantor, Mariazinha e João, no entanto, manteve-se; o desejo de lançar luz sobre este período esquecido da história portuguesa através das suas memórias também. “Em 1998, tento pela primeira vez um documentário só sobre as memórias da Mariazinha, espicaçado por um grande amigo meu já desaparecido, o João Alfacinha da Silva [1949-2007], mas também não foi possível. Finalmente, em 2011, o [meu produtor] Luís Galvão Teles propôs que voltássemos a tentar.” Os irmãos aceitaram.

“Este é um filme que se deve exclusivamente à minha relação de amizade ou mesmo de amor por esta família”, confessa o realizador, “à confiança que eles sempre depositaram em mim.” Mas aquilo que inicialmente seria apenas um registo das memórias dos irmãos dessa infância nas “colónias ultramarinas” transformou-se quando Rocha desafiou Mariazinha a regressar a Timor Leste. E ela, aos 83 anos de idade, aceitou.

Na primeira parte, filmada em estúdio em 2013 com recurso a fotografias de arquivo, recorda-se o “mundo quase perfeito” em que os três irmãos viveram na então Lourenço Marques entre 1937 e 1939. Com a colocação do pai em Díli em 1939, João, então com 12 anos, e José, com 10, são enviados para viver com a família em Coimbra para continuarem os seus estudos – é a passagem de uma liberdade total para uma realidade a preto e branco, fechada sobre si própria.

Mariazinha, com apenas sete anos, segue com os pais para Timor, onde chegam no momento em que rebenta a Segunda Guerra Mundial. Com a invasão japonesa de Timor em 1942, os dois irmãos perdem o contacto com a família durante os três anos seguintes, chegando a pensá-los mortos. A segunda parte, filmada em Timor em 2015, acompanha Mariazinha enquanto reencontra os locais onde viveu em criança. “Passados 70 anos, ela consegue descobrir praticamente todos os locais, todas as pedras, todas as árvores”, explica Rocha, ainda fascinado pelo modo como o passado ganhava vida perante a câmara. “Foi tão forte aquela experiência que ela fixou tudo, e perante isso não quis saber do material documental da época. Tinha aqui as memórias finíssimas, rigorosas, da Mariazinha. E fui atrás dos olhos dela.”

São, no entanto, memórias que parecem elidir o sofrimento dos campos – também porque quem as conta era então uma menina de 10 anos. “Poucas pessoas conhecem a história dos campos de concentração japoneses lá dentro, com espancamentos, arame farpado, gente a morrer de fome, de béri-béri”, diz o realizador. “Mas a experiência da Mariazinha com o país ultrapassa em muito a parte mais horrorosa. Ela sempre disse que a pessoa que é deve-o a Timor, por causa da relação intensa com a natureza, os animais e a vida. Até com o sofrimento.”

Documentário assumido e clássico, Rosas de Ermera é um regresso de Rocha ao formato em que fez a sua aprendizagem nos anos 1970 (e primeiro documentário seu desde a média-metragem de 1976 Barronhos – Quem Tem Medo do Poder Popular?). Mas o realizador não o separa da sua filmografia de ficção: “Mesmo num formato documental, a minha preocupação foi contar bem uma boa história, que tem princípio, meio e fim. Quando fizeram os cartazes, estava lá 'um documentário de Luís Filipe Rocha'. E eu disse: 'Não, ponham lá 'um filme de Luís Filipe Rocha'.' É um filme como os outros.”

Mas não se vai “estrear” como os outros: Rosas de Ermera será exibido numa tournée de sessões únicas que se iniciam este sábado em Lisboa (cinema Monumental, 19h) e que até Dezembro também irão ao Porto, Coimbra, Braga, Setúbal e Figueira da Foz, contando sempre com a presença do realizador (em alguns casos, com convidados como João Afonso e a jornalista Ana Sousa Dias). Esta ideia é de Paulo Branco, cuja distribuidora, a Leopardo Filmes, tomou o filme em mãos. “Em vez de meter o filme em sala e ter três, cinco, dez espectadores por sessão, ele propôs organizar um circuito de sessões-eventos. Achámos a ideia muito interessante e para este filme sobretudo justa.” Para Luís Filipe Rocha, o circuito de sessões-eventos vai ao encontro da própria natureza do filme. “Digo a toda a gente para ver o filme em sala, porque no grande ecrã tem uma outra capacidade de seduzir. Estamos ali a ouvir contar uma história, com um lado encantatório de estar à lareira com a família.”

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