As formas terrenas do bem

Dois ensaios radicais de uma pensadora intempestiva.

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Uma busca, não isenta de orgulho e desespero, dessa condição excêntrica e dolorosa que torna dizível a verdade DR

Numa carta de Londres endereçada aos pais no início de Agosto de 1943, Simone Weil (1909-1943) escreve, a propósito de Rei Lear (que era para ela a melhor, se não a única, tragédia de Shakespeare): “Neste mundo, só os seres caídos na mais extrema humilhação, muito abaixo da mendicidade, e que não são apenas desconsiderados socialmente mas encarados por todos como desprovidos da mais elementar dignidade humana – a razão –, só esses têm de facto a possibilidade de dizer a verdade.” Adiante, compara os bobos de Shakespeare àqueles pintados por Velázquez: “Advirá a tristeza nos seus olhos da amargura de saberem a verdade, de terem, à custa de uma degradação sem nome, a possibilidade de dizê-la, e de não serem escutados por ninguém?” E sublinha, na sua própria vida, a evidência de uma “afinidade”, de uma “analogia essencial” com tais figuras. A existência toda de “santa Simone”, como provocadoramente lhe chamou George Steiner (e no caso, como poucas vezes acontece com tal intensidade, biografia e obra são solidárias), parece ter sido uma busca, não isenta de orgulho e desespero, dessa condição excêntrica e dolorosa (alguns chamam-lhe loucura) que torna dizível a verdade. A sua correspondência é, aliás, frequentemente perturbadora, revelando até que ponto desmedido a autora destes dois ensaios publicados pela Antígona procurou consagrar-se à verdade, à beleza e à justiça: as “três formas terrenas do bem”. Quando ainda em Nova Iorque — para onde havia fugido com os pais em 1942, a partir de Marselha (a ascendência judaica da família assim o recomendava, mas a autora ressentiu tal fuga como uma “deserção” e não descansou enquanto não conseguiu juntar-se à Resistência gaullista em Londres) —, enviara cartas pungentes ao amigo Maurice Schumann, a voz da “France Libre” na BBC, implorando que lhe fosse dada uma missão clandestina (e perigosa, de preferência) na França ocupada: “A dor e o perigo são indispensáveis por causa da minha conformação mental. […] O infortúnio que cobre a superfície do globo terrestre obceca-me e oprime-me até ao ponto de anular as minhas faculdades, e eu não conseguirei recuperá-las e livrar-me dessa obsessão se não me calhar a mim mesma uma boa parte de perigo e sofrimento. […] Suplico-lhe que me encontre, se puder, a quantidade de sofrimento e de perigo úteis que me preservará de ser esterilmente consumida pela mágoa.”

Data desse período passado em Inglaterra, que foi curto mas intelectualmente muito produtivo, o texto de Nota Sobre a Supressão Geral dos Partidos Políticos, publicado pela primeira vez em 1950, na revista francesa La Table Ronde. Não obstante a brevidade e o título, não se trata de mero panfleto de circunstância. Não será necessário frequentar imoderadamente os meios de comunicação social (as famosas “redes” incluídas) para conferir, hoje, a pertinaz actualidade de uma observação como esta: “Chegámos a uma situação em que quase não pensamos, seja em que domínio for, excepto para tomar posição ‘pró’ ou ‘contra’ uma opinião. Procuram-se depois os argumentos, consoante o caso, seja pró, seja contra. É a transposição exacta da adesão a um partido. […] Um pouco por todo o lado — e até muitas vezes em problemas puramente técnicos —, a operação de tomar partido, de tomar posição pró ou contra, substituiu a operação do pensamento.” Weil parte da afirmação radical de que a democracia não é um fim (um “bem”) em si mesma: “Se a República de Weimar, em vez de Hitler, tivesse decidido pelas vias mais rigorosamente parlamentares e legais pôr os judeus nos campos de concentração e torturá-los requintadamente até à morte, as torturas não teriam nem mais um átomo de legitimidade do que têm agora. E semelhante coisa não é de modo nenhum inconcebível.” Daí que admita, talvez controversamente, haver “a probabilidade de que uma qualquer vontade particular se torne mais próxima da justiça e da razão [o “bem”] do que a vontade geral” teorizada por Rousseau. Se a democracia não conduz necessariamente ao bem, (nem à verdade, nem à justiça – asserção facilmente comprovável, aliás, olhando à nossa volta), já os partidos políticos – enquanto mecanismos de “opressão espiritual e mental” marcados pelo “pecado original” do totalitarismo, que Weil faz remontar à Contra-Reforma católica e ao Terror revolucionário francês – são o próprio mal: “Se confiássemos ao diabo a organização da vida pública, ele nada conseguiria imaginar de mais engenhoso”; porque, muito resumidamente, “a finalidade principal, e, em última análise, a única finalidade de qualquer partido político, é o seu próprio crescimento”, a sua própria sobrevivência. O meio torna-se o fim. Cada partido é “uma pequena igreja armada com a ameaça de excomunhão”; quem entra “submete o seu pensamento à autoridade do partido”. Porque “não há nada mais confortável do que não pensar”.

Que “as colectividades não pensam”, já Weil o havia afirmado em Reflexões Sobre as Causas da Liberdade e da Opressão Social, ensaio mais longo e estruturado escrito cerca de 1934 (mas só publicado vinte anos depois). Por essa altura, a filósofa erudita (lendária é a sua familiaridade com a cultura e a língua gregas clássicas desde os alvores da adolescência e numa das cartas de Londres conta aos pais que está a ler o Bhagavad Gita em sânscrito) decidira trocar a condição de professora pelo trabalho como operária em várias fábricas dos arredores de Paris. Perseguindo uma intempestiva vocação para comungar dos sofrimentos do mundo e talvez a santidade, entendida, aliás, como “virtude específica” mínima do cristão — e recorde-se que Weil, tendo nascido numa família judaica agnóstica, converteu-se (ainda que informalmente) ao catolicismo, para tal tendo contribuído, alegadamente, a devoção observada numa procissão durante uma viagem a Portugal.

Este ensaio é uma vigorosa tentativa de clarificar o “quadro teórico de uma sociedade livre”, a partir da crítica da incapacidade do marxismo para superar a “religião das forças produtivas” que o irmana ao capitalismo e o faz prosseguir a instrumentalização do homem, agora “ao serviço do progresso histórico”. Trata-se mais uma vez da “inversão das relações entre os meios e os fins”, essa “alienação fundamental”, o “mal essencial da humanidade”, a “lei de toda a sociedade opressiva”. Para Weil, um assalariado moderno das “penitenciárias industriais que são as grandes fábricas” é menos livre do que um artesão medieval ou até do que certos escravos na Antiguidade, e é ilusória, e até perigosa, a libertação prometida pela “embriaguez produzida pela velocidade do progresso técnico” e pela intensificação das “forças produtivas”. Desde logo, porque os recursos do mundo são finitos. Convirá relembrar que este texto foi escrito em meados dos anos 30 do século passado, quando o estalinismo era popular entre os intelectuais europeus e não se falava nem de ecologia nem de ‘sustentabilidade’. “Numa palavra”, diz Simone Weil, “o sucesso tornou-se, em todos os domínios, algo de quase arbitrário, aparentando cada vez mais ser obra de puro acaso. E, como o sucesso constitui regra única de todos os ramos da actividade humana, a nossa civilização está sendo invadida por uma desordem continuamente crescente e arruinada por um desperdício proporcional a essa desordem. Esta transformação surge no próprio momento em que as fontes de lucro, das quais provinha outrora o prodigioso desenvolvimento da economia capitalista, se tornam cada vez mais escassas […]”.

A uma economia sustentada “a golpes de especulação e de publicidade, […] corrupção, investimentos formidáveis assentando quase inteiramente sobre o crédito, escoamento de produtos inúteis por meio de processos quase violentos”, etc., contrapõe Weil a utopia mística de uma revalorização do trabalho manual como “valor supremo” de uma “civilização mais plenamente humana”; ou o trabalho como forma de “contacto por assim dizer físico com a beleza do mundo através da dor do esforço” (tal como diz numa carta). Simone Weil, a leitora atenta de Marx, nunca perde de vista as virtudes cardeais platónicas, por vezes saturadas pela conversão religiosa. O resultado é frequentemente poético: “O rendimento poderia, aliás, progredir a par da lucidez; ‘buscai acima de tudo o reino dos céus e o mais vos será dado por acréscimo’”.

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