O papel da comunicação na proteção civil: perderam-se décadas

A comunicação pode desempenhar um papel muito relevante na criação de uma cultura de proteção civil por parte da população. Mas para isso é necessária uma profunda reforma, também a este nível, na ANPC.

Por vezes é necessária uma tragédia para que decisores políticos, gestores, comunicação social e população acordem para matérias importantes. Tal aconteceu também com os incêndios florestais, verificando-se que apenas agora muitos se apercebem do papel que a comunicação pode desempenhar na proteção civil.

Constato, lendo os relatórios a propósito dos trágicos acontecimentos deste ano e da atuação da Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC), o enfoque dado à necessidade da comunicação para a criação de uma cultura de proteção civil por parte da população. Como profissional da comunicação, não deixei de ficar satisfeito por esta área ter finalmente merecido alguma reflexão por parte dos especialistas que se debruçaram sobre o tema “incêndios florestais”.

Não resisto por isso a partilhar algumas considerações e propostas. Faço-o como um contributo para que a comunicação possa efetivamente ser valorizada neste contexto.

Vejamos algumas das recomendações da Comissão Técnica Independente, nomeada pelo Parlamento: “Trabalhar [...] sobre: comportamentos de risco, alertas e medidas de autoproteção, dirigidas para públicos específicos ou para pessoas localizadas em áreas determinadas.” E ainda: “Sensibilizar os órgãos de comunicação social no sentido de incentivarem a divulgação de mensagens indutoras de comportamentos positivos de autoproteção, bem como a valorização de boas práticas de proteção que tenham contribuído para a proteção de populações.”

Completamente de acordo. Algo que o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) vem fazendo há mais de uma década, com uma estratégia, envolvendo várias partes (comunicação social, sociedade civil, público em geral, entre outros), que visou a consciencialização do cidadão para o papel que desempenha na emergência médica.

Registo de interesses: fui já, por mais de uma vez, responsável pela comunicação do referido instituto. Julgo, no entanto, não ser faccioso quando classifico de muito positivo o trabalho que foi feito (mérito também de outras pessoas) pelo INEM na comunicação.

Para alguns isto era o INEM a apostar na imagem. Veja-se o caso de um ex-alto responsável da ANPC que numa audição parlamentar, em 2014, comparou a capacidade de o instituto comunicar a “colocar nas notícias” que se ajudou uma velhinha a atravessar a estrada... Engano puro desse e de outros "entendidos". E talvez agora percebam porque é que o INEM está anos-luz à frente da ANPC no que diz respeito à comunicação.

Pode a ANPC recuperar o tempo perdido? Pode, sem dúvida — até porque agora existe vontade política —, mas para isso precisa:

1. Mudar a forma como encara a comunicação, percebendo que esta função não se esgota no “relacionamento com a comunicação social”. Saber responder às necessidades dos órgãos de comunicação social é importante, mas comunicar vai muito para além disto.

A comunicação precisará de ser encarada como uma função planificada e permanente e não apenas em contexto de crise. E que se destine a impactar vários públicos-alvo (e não apenas os jornalistas), com especial enfoque para os cidadãos, sendo que hoje em dia é possível comunicar com estes através de formas alternativas à comunicação social tradicional.

É imperativo a aposta na produção de conteúdos e na sua disseminação através uma estratégia de comunicação multicanal. Envolvendo as escolas, as empresas e outras instituições, dado que esta será uma tarefa de todos, cujos resultados apenas vão surgir no longo-prazo, o que torna ainda mais urgente que se comece desde já.

2. Alterar a sua estrutura interna. Atualmente, a comunicação está integrada numa Divisão de Comunicação e Sensibilização, pouco valorizada no organograma da ANPC. Ora, a comunicação deve ser uma função desempenhada ao mais alto nível de gestão das instituições. Para que seja respeitada pelas restantes áreas orgânicas e para que possa ter efetivamente meios e autoridade para cumprir as suas funções.

Deste modo, numa futura reorganização da ANPC, deveria ser criada uma Direção Nacional de Comunicação. E que na sua dependência tivesse dois gabinetes para duas áreas importantes, mas diferentes entre si: o relacionamento com os media e a sensibilização do cidadão.

Sendo a comunicação, no seio da Administração Pública, vista habitualmente como algo dispensável, externalizável ou até desnecessária, será necessária coragem e visão para fazer esta aposta. Mas exemplos não faltam, de entre organismos estatais, em como a forte aposta na comunicação potenciou a consciencialização para determinadas matérias, mudou comportamentos e — muito importante! — alcançou resultados muito positivos.

3. Recrutar especialistas nesta área. Não tem qualquer justificação que, havendo profissionais com formação específica nesta área (em Portugal há vários de grande competência), a comunicação continue a ser entregue a elementos com formação noutras áreas.

O resultado não pode ser famoso: não se tem sensibilidade para esta temática e não se dominam conceitos e técnicas para uma comunicação eficaz. É mais ou menos o mesmo que colocar um diretor de jornal (sem desprimor para estes!) a comandar o ataque a um incêndio florestal.

O caminho seguido neste domínio nos últimos anos foi errado: um jornalista ou aquele ex-assessor de imprensa ministerial que é preciso encaixar foram soluções que nunca criaram raízes ou tiveram sequer condições para trabalhar a comunicação numa perspetiva alargada. A ANPC precisa, isso sim, de ter condições para criar uma equipa de especialistas em comunicação, nas suas várias vertentes, com condições de trabalho estáveis e que permitam atrair talento e competência.

Em suma, a comunicação não é uma área para amadorismos. Tem de ser pensada e executada de forma profissional, numa perspetiva de longo-prazo e com um objetivo pedagógico e de criação de uma verdadeira consciência e cultura na proteção civil.

Tenham as instituições (e os decisores políticos, já agora!) a humildade de aprender com os bons exemplos e certamente estarão melhor preparadas para cumprir a sua missão. É do que precisa a ANPC, partindo já tarde para este desafio, mas tendo agora a oportunidade de começar um trabalho que, dentro de alguns anos, dará os seus frutos.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Sugerir correcção
Comentar