Uma greve não se faz para chocar

Somos uma classe profissional a quem é exigido um produto final ao qual não se admitem falhas. Entalada entre a obrigação de manter níveis elevadíssimos de empenho e desempenho e de ter cada vez menos condições para isso. Não paralisamos para chocar

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Rui Gaudêncio

Duas greves nacionais de médicos em menos de seis meses é algo que não vemos muitas vezes. A maioria de nós escolheu ser médico para cuidar, para tratar, para estudar, para se dedicar ao doente e ao conhecimento. Não é normal que duas vezes no mesmo ano tenhamos que fechar a porta de nossa casa e dizer "hoje não trato, lamento".

Se o fazemos é porque nos aproximamos de algum limite que nos abala estruturalmente, sentido tanto por quem trabalha há cinco anos como por quem trabalha há trinta.

Somos uma classe profissional a quem é exigida toda a disponibilidade moral e um produto final ao qual não se admitem falhas. Entalada entre a obrigação de manter níveis elevadíssimos de empenho e desempenho e de ter cada vez menos condições para isso. Não paralisamos para chocar.

As perspectivas de carreira são miragem, sem colocação estável e sem progressão. As horas extra, a maioria delas imposta, continuam a ser pagas bem abaixo do valor tabelado, apesar de múltiplas promessas de serem repostas. Sem resolução das assimetrias de imposições e compensações, consoante o modelo em que se trabalhe. Sem propostas realistas para atrair jovens a áreas desfavorecidas.

A legislação sobre a definição de acto médico mantém-se uma incógnita. Enquanto isso vemos técnicas, meios de diagnóstico, terapêuticas e lugares ameaçados por carreiras não-médicas que querem colher frutos sem plantar árvores.

Legalizam-se contudo as medicinas alternativas, baseadas em crenças sem base científica, que se querem equivaler ao nosso conhecimento, mas não à nossa responsabilidade. E não os vejo abertos à noite, fins-de-semana, feriados. Provavelmente não precisam, já ganharam o quíntuplo em metade do tempo. E os hospitais têm sempre a porta aberta, não há-de morrer ninguém por causa deles.

Não vou demorar-me com as risíveis, ridículas e irresponsáveis declarações sobre compensar o Estado após a saída do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para o privado. O Internato Médico é passado a trabalhar, no duro. Se os internos deste país só fizessem estágios observacionais, o SNS colapsava antes da hora de almoço. Qualquer dia, pagamos pela honra de trabalhar.

No SNS, continua a faltar gente. Atenção, não é que faltem médicos formados. Falta é contratá-los. E os que estão nos quadros acumulam a carga, continuam a lutar por simples descansos compensatórios. Nos Cuidados de Saúde Primários, o número de doentes por médico aumenta, o tempo para consulta diminui...

A idade de reforma em constante aumento é absurda — não peçam a quem tem 67 anos a dedicação física e a disponibilidade emocional de quem tem 30. Médicos em tarefa não são solução, não contribuem para a estrutura e tornam-se dinheiro mal gasto em empresas de prestação de serviços. Quantos deles não preferiam ser contratados?

Faltam meios humanos, faltam meios físicos, falta material em tantos hospitais deste país. A saúde consome muito dinheiro, sem dúvida. O problema é quanto dele está desviado para recursos secundários, contratação de serviços desadequados, programas sombrios, remunerações e prémios desajustados no topo do organograma.

Sem regressar às origens da Medicina, sem humanização do médico e da sua relação com o doente, não há forma de conseguir que ambos saiam satisfeitos da singular interacção entre quem cuida e quem precisa de cuidado. Ambos saem “assim-assim”. Ambos se arrastam até algo melhor aparecer.

Mas nada aparece sem que se lute por isso. Mais uma greve, mais um aviso. Pedem-nos excelência, cuidado, alma, qualidade. Empenho e desempenho. É exactamente o que queremos dar. Há que ir relembrando, veementemente, que o SNS precisa de condições para o fazer.

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